Flores de plástico também morrem. Confira a coluna de Julie Fank
Desde criança, uma das coisas de que eu mais gosto é andar descalço. Em casa, na praia e até em sala de aula. Fico tão à vontade que dispenso até a meia. O que para minha mãe sempre foi sinal de rebeldia já me rendeu cacos de vidro incomodando por dias e algumas cicatrizes, mas também me fez – deve ser coisa de signo de terra – olhar sempre para onde piso.
Sei muito bem que cacos me rendem dor, que pedras posso suportar, qual areia é movediça. Eu já falei aqui, sempre tive medo de fogo, de isqueiro, de fósforo. Sempre tive medo de queimar, deve ser memória bruxesca, deve ser passado indígena incrustado na minha genealogia (sim, nem que eu não tivesse), deve ser porque aprendi a andar na água. Água e terra perdem para o fogo, dizia algum joguinho infantil. Não, acho que água ganha do fogo, não? Não quando um aquífero está embaixo da terra e não tem pra onde fugir. Nossos tesouros estão todos abaixo de nós.
Até ontem, havia partículas limpas protegendo nossos pulmões, hoje não sabemos mais. Um país quase no fim e a gente preocupado com a cor do laminado e a tinta que imita a natureza. Talvez não tenhamos mais o que imitar. E aí pode doer viver num lugar-simulacro, tão cuidadosamente arquitetado, tão bem decorado, todas as flores de plástico – prestes a morrer também.
“A floresta mais distante emite seus sinais. Mas ela, em muito pouco, não estará mais lá.”
Escrevo este texto no momento em que a maior floresta do mundo morre carbonizada e uma nuvem negra paira sobre São Paulo – um recadinho de nenhuma palavra para péssimos entendedores. O texto, minha editora me conta, precisa falar sobre arquitetura. É possível falar de cidade sem olhar para o chão que chora sob nossos pés? Arquitetura honesta, arquitetura afetiva, arquitetura de papel de parede.
De que adianta construirmos casas mais sustentáveis e abolirmos o copinho de plástico enquanto preferimos o papel que imita a folhagem à floresta por ela mesma? Enquanto preferimos o papel à celulose que lhe dá origem? Sempre pensei que a expressão de pés descalços era um bom adjetivo para coisas genuínas, alinhadas com sua origem, para coisas que se sentem em casa. Mas como se sentir em casa, como saber onde pisamos se o chão pode não estar mais ali? A realidade corre perigo. E ainda estamos aqui. Nossos cinco sentidos prestam atenção no que podem. A floresta mais distante emite seus sinais. Mas ela, em muito pouco, não estará mais lá.
De que adianta planejar uma salinha alugada num prédio em chamas? É a terra que sabe, é ela que abriga, é ela que chora. Não há partida quando não há pra onde voltar. Não há descalço quando não há onde pisar. E tenho a sensação de que não há mais quando. Escrevo este texto no momento em que não há mais… as palavras estão em falta. Elas não têm mais conseguido. E flor nenhuma dará mais conta de sorrir amarelo fingindo ser de verdade quando não houver o que contemplar.