ESTILO

De Curitiba para o mundo: Banda Tuyo lança álbum pensado no “adultecer”

O segundo disco de estúdio do grupo curitibano reúne nove faixas que vasculham o que acontece depois do caos

“Passei pela ponte e vi por cima dela o que quase ninguém viu” é o que narra o primeiro verso da primeira música de Chegamos sozinhos em casa, álbum lançado pela banda curitibana Tuyo na última quinta-feira (27). A obra, que é a segunda lançada por Lio, Lay Soares e Machado, é um retrato de quando os três integrantes fecharam a porta dos seus respectivos lares e abriram um portal de possibilidades sonoras, de pertencimento e de amadurecimento.

No processo, os músicos se questionaram: o que vem depois do caos? Termo, inclusive, descrito por Lio como uma nova ordem, inédita, não programada. “Um outro rumo para coisas que você planejou pode não permitir uma compreensão imediata do que está acontecendo ao redor. Leva tempo, causa confusão. Aquilo que não se pode controlar, não existe possibilidade de reparação. O que entendemos como desordem é essa outra organização não prevista, não programada. Quando a experiência foge do controle”, argumenta a artista sobre os conceitos que nortearam a produção.

No álbum, além de refletirem sobre o “não lugar” que ocupam — seja no mercado da música ou na sociedade —, eles criam as próprias referências do que é “adultecer“. Por isso, para Lio, o conceito de amadurecimento se aproxima bastante da ideia de autopercepção e autoconhecimento. Para ela, isso também tem relação com território.

Lio (Foto: Juh Almeida)

“Entender os grupos dos quais quer fazer parte e não pode entrar, os que não quer fazer parte e não consegue sair. Crescer também abarca compreender como o seu convívio acolhe ou negligencia gênero, raça, crença… A gente vai sacando, vão caindo as fichas sobre o que significa ser negro, ser mulher, desmanchar vínculos religiosos”, afirma a artista, acrescentando: “Essas escolhas – ignorar ou encarar essas realidades – determinam nosso lugar. O disco carrega um relato bem meticuloso sobre essa jornada”.

Com o patrocínio de Natura Musical, o álbum chegou aos aplicativos de streaming ainda no dia do seu lançamento. Uma de suas canções, O jeito é ir embora, também está disponível no canal do YouTube do grupo com um registro audiovisual da primeira apresentação da faixa, que aconteceu no festival SXSW e foi apontado pelo jornal New York Times como uma das apresentações de destaque do evento.

Ao longo das nove canções, Lio, Lay e Machado percorrem por um campo pop para verbalizar seus devaneios – ora individuais, ora coletivos. “São as nossas vidas, histórias, realidade e sensações. Relatos de como atravessamos cada episódio – mudar de cidade, morar sozinho, perder pessoas queridas, casar, divorciar, deprimir, empolgar, envelhecer. Parece bastante particular, mas esses episódios se repetem em outras casas, outros corpos”, explica Lio, acrescentando que, no disco, há uma concentração de episódios migratórios que estão sempre presentes no processo de se compreender adulto.

“A nossa vontade é a de chegar no fundo do poço da alma do outro. Achamos uma forma de fazer isso de um jeito mais seguro e saudável”, diz Lio sobre a nova configuração territorial da Tuyo depois de decidirem não viver mais na mesma casa. “Morando juntos, a gente sempre compôs sozinhos. Agora, a gente compõe junto e moramos sozinhos”, conta sobre o processo de “separação”.

Ao passo que foram traçando novos limites geográficos, os integrantes também revisitaram as próprias emoções para entender como a sensação de não pertencimento e o movimento de partida – inspirações para Vitória Vila Velha e O jeito é ir embora, respectivamente – marcam o amadurecimento dentro de cada um.

Lio lembra que os integrantes do grupo moraram juntos durante alguns anos. Ela afirma: foi bem bom! “Viver em família, cuidar um do outro, fazer parte da vida um do outro é bonito, cria coisas inquebráveis. Mas tem uma hora que você passa a não enxergar mais os limites. Onde é que um começa e o outro termina, aquela velha história das fronteiras borradas”, exemplifica a artista, que continua: “É mais difícil saber o que é seu mesmo porque você decidiu que seria e o que é um cacoete de imitação, um conforto de deixar o outro escolher por você”.

Lay (Foto: Juh Almeida)

Na faixa O jeito é ir embora, os músicos recortam o incômodo descrito por Lio e falam sobre a solução que encontraram: “A separação geográfica entrega autonomia, individualidade, alívio também. Não pela vontade de estar longe, mas pela vontade de estar só. O disco aconteceu enquanto vivíamos muitos processos de separação e foi natural escrever sobre como isso afetou cada um”, conta.

Como ocorre em qualquer situação de mudança, a separação geográfica do grupo transformou a Tuyo — contudo, de uma forma bastante diferente do que imaginavam. “Mas sem provocar grandes desconfortos, já que a pandemia alterou um pouco os cálculos de saída. Lá atrás, quando passamos a morar sozinhos, tínhamos imaginado que o lugar de encontro seria a estrada. Chegar sozinho em casa depois de ter vivido as aventuras de uma turnê – que foi nosso ritmo durante 2018 e 2019. Com a chegada da pandemia esse movimento passou a ser controlado pelo distanciamento e pela saudade”, narra Lio, que afirma: a sorte, na verdade, foi terem passado a morar no mesmo prédio, no mesmo bairro. Então, os encontros estavam mais guiados pelo cuidado e pelas lives do que pelos shows, que passaram a não existir durante o período de pandemia.

Lay, por sua vez, acrescenta: “Ir embora parece fazer sentido, mas, nessa jornada de autoconhecimento, percebemos que muitos dos nossos fantasmas e questões nos acompanham quando a mudança é apenas geográfica”. Fantasmas, inclusive, que aparecem em O que você diria agora, composição atravessada por uma despedida impulsiva, causada por raiva e decepção. “Muitos sentimentos morrem e nascem de uma despedida desnecessária. No momento da partida, a saudade já nasce cristalizada”, reflete Machado.

Para Lio, respostas guardadas e escondidas pelo tempo criam um emaranhado de sentimentos que às vezes fica difícil de entender como surgiram e para onde querem ir. Portanto, ela reitera: “É difícil entender como organizar essas coisas quando se tem a vontade de falar mas não tem quem ouça – ou quem se interesse. Raiva, amor, saudade, empatia… fica tudo ali dentro implodindo sem respeitar o que os guardam e só resta lidar com tudo isso sozinho”. Por isso, O que você diria agora, de acordo com a banda, é um convite para o confronto, seja com quem quiser ouvir ou consigo mesmo. Afinal, chega uma hora que não dá mais para segurar tanta confusão. “É a vontade de resolver consigo mesmo a bomba que colocaram no seu colo”, reflete Lio.

Machado (Foto: Juh Almeida)

Leveza

Além de sensações densas, o álbum também abraça a leveza: Sonho da Lay, outra faixa registrada em um videoclipe, é bem representativa da partida da Tuyo rumo a experimentações com elementos mais pop e da estética visual que também conduziu a construção da capa do disco, fotografada em São Paulo. Luccas Carlos, nome de destaque na cena nacional por suas melodias, participa da canção, democratizando os temas densos tratados pela Tuyo sem perder a profundidade.

“Os processos estéticos na Tuyo quase sempre partem da poesia, dos assuntos, são os temas que vão criando os desdobramentos. A gente escolheu repetir azul por todo lado por conta das discussões de território, por exemplo. Desde Sem mentir falamos sobre pertencimento, identidade, autorreconhecimento, dar nome pras coisas. Nada de novo nos nossos métodos — estamos sempre martelando a coisa do sentir —, tudo de novo nas etapas. Talvez, neste momento estejamos mais cansados. Característica primordial da vida adulta: a coisa do cansaço”, brinca Lio.

(Foto: Juh Almeida)

A canção citada, Sem mentir, também foi escolhida como single e chegou ao público no ano passado por funcionar justamente como um bom prólogo das reflexões que brotaram nos membros da banda. “A canção resolveu a vontade de comunicar e também chegou como um emblema bem pontual do que o público pode esperar do disco, uma preparação para o que estaria por vir”, reitera Lio sobre a sexta canção do álbum.

Seguindo esses questionamentos impulsionados pela liberdade, Tem tanto Deus, sétima faixa de Chegamos sozinhos em casa, vai de encontro a ideias religiosas sobre um criador e propõe que o temido fim dos tempos não seja necessariamente triste e cheio de dor — podendo, inclusive, ser um alívio e um momento de paz. Lio, inclusive, afirma que, apesar da música não caminhar muito na crítica à intolerância religiosa, ela passa, sim, pela discussão.

“Acho que o que tem ali é o resgate daquela conversa de bar: religião é controle, é poder. Então, se tudo for real, se a gente for escrutinado por deuses pra entender o quanto a gente se parece com deuses – perfeitos, divinos, completos, irrepreensíveis – que venha logo esse juízo e a gente se prove imperfeito. Acho que Tem tanto Deus é uma confissão, um parêntese para negar as divindades e divagar sobre que preço se paga por isso”, argumenta.

A banda canta que “nenhuma dor é pra curar”. Por isso, ao ser questionada se Chegamos sozinhos em casa poderia curar ou ajudar a refletir sobre processos internos, Lio afirma: “Não é uma coisa que a gente pode sair por aí afirmando ou garantindo. A busca é sempre essa: de alguma forma a gente tá sempre procurando estar bem, ficar bem, não sentir dor”. Contudo, de acordo com ela, isso é algo que foge do nosso controle. A cantora afirma: esse disco não veio pra ajudar ninguém — e nem aos próprios artistas. “O álbum veio para questionar algumas coisas, na tentativa de compreender o que se sente e como se sente. E, isso, talvez nos leve a algum tipo de bem estar, físico, mental ou emocional”, conclui Lio.

Ouça o álbum

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