CRÍTICA: Nomadland (2021) e sua espontaneidade rigorosa
No cinema, há o conceito de “decupagem”. Ela consiste na divisão do roteiro em planos, ou seja, é na decupagem que se define como o filme será filmado: enquadramentos, lentes, movimentos de câmera, etc. Não existem regras de decupagem. Há diretores que optam por algo mais formalista – planos mais fixos, câmera mais estável, enquadramentos e movimentação mais tradicionais -, e outros que escolhem uma abordagem espontânea – câmera mais livre, sem uma movimentação pré-definida, subversiva ao deslocalizar o espectador na cena – . Portanto, é interessante como Chloé Zhao é talentosa ao se utilizar de certo formalismo como norte para sua abordagem mais naturalista e espontânea.
O filme conta a história de Fern (Frances McDormand, uma das únicas atrizes profissionais filme), uma mulher de 60 anos que, após um colapso econômico de uma cidade na zona rural de Nevada, reúne seus pertences em uma van e passa a viajar pelos Estados Unidos, trabalhando em empregos temporários, como uma nômade dos tempos modernos.
CONFIRA: clique aqui para ler e acompanhar todas as Críticas de cinema da TOPVIEW
Zhao é uma autora que conhece o material que tem em mãos, já que sua narrativa é um reflexo da jornada da protagonista: a busca da desconstrução sem abrir mão da tradição. Ao longo de sua jornada, Fern constantemente pratica o desapego, seja de empregos, espaços, objetos ou pessoas. Em determinado momento, sua prática é relacionada aos tradicionais pioneiros do país. Portanto, para ilustrar a história, Zhao opta também por um desapego ao filmar o material, “desconstruindo” continuamente algumas convenções do cinema de ficção, mas sem abandonar por completo alguns de seus artifícios mais tradicionais.
A câmera da diretora é, na maioria do tempo, mais despojada e flui livremente em torno de Fern. Porém, mesmo que abrace uma decupagem mais espontânea e documental – principalmente ao filmar diálogos -, as cenas onde a protagonista se encontra sozinha, por exemplo, são filmadas sob um código visual muito tradicional: a câmera se afasta em um plano geral e centraliza-a no quadro, isolando-a do resto do mundo.
A maioria dos personagens são pessoas reais e boa parte do desenvolvimento dramático do filme é formado por diálogos improvisados, mas também há encenações, com atores profissionais, que contribuem para a construção da protagonista. A montagem opera sob a mesma lógica, se utilizando desse material de caráter quase documental para compor uma poesia mais mais “artificial” e contemplativa, o que remete muito ao cinema de Terrence Malick.
É através desses pequenos lampejos de “simulação” que ela nos lembra que ainda estamos diante de um filme de ficção, enriquecendo a experiência e reforçando o poder da linguagem cinematográfica na contação de histórias. Ou seja, essa transição natural entre as duas modalidades (formalista tradicional e espontânea documental) demonstra que, mesmo soando despretensiosa, a visão criativa da diretora é fundamentalmente rigorosa.
McDormand está gigante. Nos trejeitos, constrói uma mulher real, tímida, insegura, e extremamente carinhosa. Toda essa técnica é trazida para suas interações, que nunca soam encenadas, mas também não carregam traços fortes de improviso, de modo que não sabemos onde começa Fern e onde termina Frances.
Em Nomadland, Chloé Zhao é inteligente ao se desprender da ficção para, justamente, potencializar uma história ficcional. Essa abstração da barreira que divide encenação e realidade funciona tanto como fragmentos documentais daquele estilo de vida, quanto como artifícios de criação de uma empatia poderosa no espectador. No fim, o que nos resta é assimilar a experiência poética, libertadora, inevitavelmente trágica e solitária inerente ao novo estilo de vida que foi incumbido à Fern.
NOTA: ★★★★★
No OSCAR 2021, Nomadland foi indicado aos prêmios de melhor filme, melhor direção, melhor atriz, melhor fotografia, melhor roteiro adaptado e melhor montagem.