ESTILO

Lirismo como resistência: as novidades da curitibana Companhia Brasileira de Teatro

Um dos mais potentes grupos do país, a companhia prepara uma peça a partir da negritude brasileira e aprofunda sua arte como encontro entre pessoas

Às dez horas de uma noite de maio, o elenco de Krum inverteu a movimentação de ocupação da plateia, como se estivesse se retroassistindo em pleno espetáculo, para fixar-se no palco do Guairinha. O bate-papo sobre a peça da companhia brasileira de teatro começou com o depoimento de três mulheres portadoras de deficiência visual sobre a experiência do espetáculo com audiodescrição; uma amazonense de Lábrea enfatizou a importância do acesso à cultura com conhecimento de causa. Contudo, o que mais se ouviu foram relatos impactados sobre a experiência daquela noite. “Eu só estou sentindo”, foi o que uma moça conseguiu expressar.

É difícil explicar por onde as obras do grupo curitibano nos pegam. Suas peças não têm temas, seus atores não representam e seu próximo projeto talvez nem seja “teatro”. Antes da negação, contudo, é a abertura que caracteriza a companhia, fundada em 2000 pelo diretor e dramaturgo Marcio Abreu e que conquistou os principais prêmios da área. “Sempre tem uma preocupação de rever códigos já estabelecidos”, observa Grace Passô, atriz, diretora e dramaturga que está no segundo projeto com a companhia, sobre sua linguagem. “Tem uma forma muito original de criá-las (…) e o modo como trabalha é muito aprofundado – em relação ao autor, aos temas que o texto levanta.”

PROJETO bRASIL é exemplar desse entendimento de teatro. Até a estreia, em 2015, Marcio Abreu, Nadja Naira e Giovana Soar passaram por um período de pesquisa e leituras sobre o país (obras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do sociólogo Sergio Buarque de Holanda e do romancista Milton Hatoum ainda ocupam uma grande estante na sede no Largo da Ordem), de viagem e vivência das cinco regiões (fosse em experiências tipicamente turísticas até encontros marcantes com pessoas ao acaso), de palestras com especialistas e diálogos, e então de criação coletiva (já com o ator Rodrigo Bolzan e o músico Felipe Storino para completar o elenco) na sala de ensaio onde focaram assuntos e fizeram exercícios a partir de provocações e tópicos propostos pelo diretor. “Todos os dias eu e o Rodrigo apresentávamos 40, 50 minutos – era uma peça por dia”, lembra Giovana sobre o processo que levou, ao todo, dois anos. “E disso, acho que cinco por cento está no final. Mas tudo isso está no trabalho.” bRASIL partiu do zero, sem roteiro, formato ou objetivo prévios. Texto e dramaturgia foram elaborados simultaneamente, nos ensaios. A ideia, afinal, não era falar sobre o Brasil – mas se deixar afetar por ele: “(…) em vez de retrato do país, é uma resposta”, analisa a crítica Luciana Eastwood Romagnolli em texto na edição em livro de bRASIL. Trata-se daquilo que ficou impresso dessa experiência para os integrantes e como devolvê-lo num gesto artístico.

A resposta da companhia é formulada em 16 “atos” que não constituem uma história linear nem têm personagens, não pretendem explicar ou ilustrar questões sobre o país. Antes, reverberam no plano intelectual, estético, sensível por formas múltiplas: músicas (Aquarela do Brasil ganha outro sentido enquanto Giovana Soar tenta falar mas só consegue cair), discursos de personalidades políticas, falas fragmentadas, etc. Trata-se de um material performativo que não pode ser ensaiado, pois acontece naquele momento. “A gente está ali com as pessoas [na plateia], tocando violão, tomando uma cachaça e daí alguma coisa começa, alguém toma a palavra”, comenta a atriz e tradutora sobre o momento inicial do espetáculo, quando o público entra no teatro, toma seu assento e compartilha “a emoção do momento” com os atores – que pode ser veiculada por beijos, como na estreia em Curitiba: na bochecha, intenso, um selinho ou uma recusa, dependendo do espectador. Isso, como se ensaia?

“Existe uma complexidade aí que nenhuma psicologia dá conta. É um outro ator, que trabalha com a sua presença naquele lugar, naquele momento”, diz Giovana sobre os desafios de atuação na companhia, que não se utiliza subtexto ou psicologização do personagem. Ela lembra o diretor Roberto Alvim, para quem há mais no ser humano do que psicologia, filosofia ou ciência podem explicar. Como em Krum, em que os personagens se retroassistem, não se trata de o ator se identificar com aquilo, mas “transitar sobre aquela ideia, fazer acreditar que sou aquilo, mas também me olhar de fora ao mesmo tempo”, afirma Marcio Abreu. Em contrapartida, o espectador não só assiste, mas é parte do acontecimento: estão todos juntos, no mesmo lugar, no mesmo barco, como diz Giovana: “A gente não trabalha com a ideia de representação, mas de apresentar de novo. Toda noite eu pego esse material e lido com ele novamente no momento presente. (…) Agora, se não for isso, vai ser o quê? A gente vai fazer de conta?”

“Espero que a Companhia Brasileira de Teatro saiba o quanto me sinto mais livre e resistente trabalhando com eles.”
Renata Sorrah

Atualização da humanidade

Em minúsculas e fora do eixo Rio-São Paulo, a companhia brasileira de teatro ficou conhecida pelo trabalho de pesquisa dramatúrgica; pela porosidade de intercâmbios artísticos com países como França e Alemanha e colaboração de artistas de diferentes partes do Brasil – Luis Melo foi um deles, Ranieri Gonzáles e Rodrigo Bolzan são parceiros constantes, a carioca Renata Sorrah começa uma terceira parceria e a mineira Grace Passô uma segunda, como atriz e dramaturga junto a Marcio; por montar autores de teatro contemporâneos relevantes e inéditos e encarar texto, atuação, iluminação, cenário e música como elementos igualmente importantes – a forma é fundamental para gerar possibilidades de leituras e percepções, acompanhando um mundo que não é binário. Sem recusar o teatro “tradicional”, se opõe, sim, à reprodução de padrões culturais, colocando duas perguntas que permeiam todos os seus trabalhos: como o teatro? E para quem? A origem desses questionamentos se confunde com as da companhia. “Fazer teatro sempre significou pensá-lo como possibilidade, como forma de diálogo, como percepção do mundo”, avalia Marcio Abreu. Com fala doce e sotaque carioca de quem chegou a Curitiba na adolescência, ele, que “deu início a um dos mais sólidos e belos trabalhos de grupo em território nacional” segundo o júri da Folha de S. Paulo, que o elegeu personalidade do ano no teatro em 2012, acredita na arte como “elemento de atualização da humanidade, de resgate de percepções sensíveis do mundo e do outro”. Um marco para a companhia foi a apresentação de Suíte 1, cuja estrutura de dramaturgia é novamente radical, no interior de São Paulo. O público que esperavam encontrar suscitou a preocupação de se as pessoas iriam se relacionar com a obra. Ao contrário. “Foi onde a peça começou a acontecer para a gente de verdade, onde as pessoas repetiam frases, escreviam para a gente, viam e reviam a peça”, recorda o diretor sobre o próprio preconceito. O mesmo com PROJETO bRASIL, numa apresentação gratuita no Teatro Amazonas, onde se reuniram pessoas de diferentes idades e classes sociais, e leram em uníssono um discurso do ex-presidente do Uruguai José Mujica. “Muitas daquelas pessoas provavelmente têm outras ideologias, mas acho que o teatro, a arte tem a capacidade de escavar túneis que criam conexões entre visões de mundo tão distintas, que aqui, na vida social, muitas vezes são barreiras intransponíveis”, avalia Abreu. Uma barreira que estão enfrentando atualmente é um desdobramento de bRasil. PRETO começa como sua matriz: do zero. O elenco (que inclui Renata Sorrah e Grace Passô) acaba de fazer uma residência artística na Alemanha para investigar questões da negritude brasileira, incluindo racismo e empoderamento, em referências teóricas, experiências compartilhadas, discussões e muita escuta. “Eu me deparo com a minha impossibilidade o tempo inteiro, ingenuidades, de ver outra camada que está por baixo do meu pensamento e que me impede de ver outra coisa”, ilustra Giovana Soar sobre a relevância e o desafio do projeto. Mas PRETO não é uma peça sobre o racismo. “Parte de questões relacionadas à negritude brasileira e ela é tão infinita quanto o próprio Brasil”, explica Grace Passô, mineira que vai dividir o texto com Marcio Abreu e que é ligada à militância negra. O momento, ela diz, é de aproximação com o tema: “Eu acabo te dando poucas informações concretas, mas isso é, não tenho dúvida, um espelho do que são os processos da companhia brasileira”. 

Companhia Brasileira de Teatro

• fundada em 2000, em Curitiba, onde ainda está sediada
• conquistou os principais prêmios de teatro do país – Shell, APCA, Bravo!, Gralha Azul, etc. – em diversas categorias: atuação, iluminação, cenário, direção, melhor espetáculo • destaca pela-se pesquisa teatral e pela encenação de textos de teatro contemporâneo no Brasil

*Matéria publicada originalmente na edição 200 da revista TOPVIEW. 

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