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MINIDOC: Assista “Tipo de arte”, curta-metragem da TOPVIEW sobre tipografia

Originalmente, tipografia quer dizer impressão dos tipos. Antigamente, usavam-se moldes de ferro de cada letra para imprimir as palavras no papel: a esse processo, portanto, é que dava-se o nome de tipografia. Em Curitiba, Raquel Gapski reinaugurou a antiga oficina tipográfica de seu avô, Zico Gapski, ressignificando a tecnologia que revolucionou a história da comunicação em seu surgimento para um item de luxo. Assista ao minidocumentário Tipo de arte, produzido pela TOPVIEW para complementar a edição #250 da revista. 


Abaixo, leia a matéria, que também compõe o conteúdo editorial da revista, na íntegra:

Tipo de arte

A tipografia, tecnologia que auxiliou o desenvolvimento da língua, da cultura e das ciências pela Europa no século XV e posteriormente caiu em desuso, hoje é ressignificada como item de luxo

Máquinas tipográficas chumbadas no chão da oficina desde 1957 (Foto: Acervo pessoal)

É possível admitir certa familiaridade entre a tipografia e o que acontecia na Pré-História, quando os seres humanos esculpiam caracteres nas paredes das cavernas em forma de desenho para representar tarefas do seu cotidiano. Contudo, foi o século XV, provavelmente, o de maior importância na história da tipografia — à época, sendo interpretada como sinônimo de impressão. Sua difusão, portanto, está intimamente relacionada aos trabalhos do alemão Johannes Gutenberg, que viveu nos anos 1400.

Entende-se que, a partir dali, houve uma verdadeira revolução tecnológica operada pelo inventor e gráfico europeu. A escrita passou a ficar duradouramente fixada em letras de chumbo: em vez de manuscritos, a tipografia começou a ser utilizada – e os mestres tipógrafos orientaram a evolução das letras. Com a fundição de tipos, passaram a existir letras fundidas, o que permitiu o desenvolvimento da língua, da cultura e das ciências por todo o continente. Não à toa, foi a forma de impressão mais comum durante séculos.

Contudo, em 1993, a impressão por meio digital começou a ser utilizada. Dessa forma, ao tornar possível uma maneira mais rápida de imprimir, a alternativa começou a roubar espaço das tipografias, que exigiam um trabalho manual minucioso, mesmo para pequenos serviços. Portanto, ressignificando a utilização dessa forma de impressão, a curitibana Raquel Gapski reativou a antiga oficina tipográfica do seu avô, Sesisnando Gapski, que ficou conhecido como Zico. A empresa, que, na década de 1940, assinava como Fábrica de Máquinas Tipográficas Gapski, hoje, possui um novo olhar sobre a tecnologia, transformando-a também em um item de luxo. 

Raquel Gapski e as centenas de gavetas com tipos. Em cada uma, havia o alfabeto completo, numerais, pontuação e caracteres especiais (Foto: Acervo pessoal)

“A minha ideia é fazer realmente um atendimento personalizado. Oferecer uma papelaria fina para as pessoas que valorizam esse tipo de trabalho artesanal. Nossa parte mais valiosa é justamente o processo. Afinal, usamos justamente os tipos móveis que eram da tipografia do meu avô. São letras históricas já trazem consigo toda uma história de utilização. Essas letras foram usadas nos anos 1970 e são usadas ainda hoje”, explica Raquel, que possui uma relação muito mais íntima com a oficina do que algo simplesmente empresarial. 

Devido ao fato da tipografia estar no mesmo terreno da casa dos seus avós, a artesã teve sua infância marcada pelo local. Quando sua família retornou de Portugal — para onde seu pai fora estudar Medicina –, morou justamente nessa casa, onde considera ser seu local de nascimento. Ela explica que, apesar de logo terem se mudado para onde seus pais vivem até hoje, o fundo da tipografia sempre fez parte de sua vida. 

“Sempre foi um lugar arborizado. De encontro da família para churrascos, de eventos. Por isso, minha infância foi muito marcada pelo jardim da tipografia, no qual vinha catar ameixas do pé, que tinha à época. Além da própria tipografia. Todos os impressos da família foram feitos aqui. Casamentos de parentes, por exemplo. Quando criança, eu ia até a oficina para pegar papeizinhos e cortar”, lembra Raquel. 

De família

Na verdade, Raquel afirma que, no fim das contas, faz de tudo para eternizar o legado deixado por seu avô, Zico Gapski, um dos fundadores da empresa, que, nos anos 1940, ainda era uma fábrica de máquinas tipográficas. Na época, com seus irmãos, Paulo e Jango, Sesisnando instalou uma pequena tornearia mecânica no fundo do terreno de seus pais, Luiz e Apolonia Gapski – bisavós de Raquel –, e se especializaram na fabricação dessas ferramentas, cuja produção era vendida para todo o Brasil. 

Os irmãos tinham conhecimento sobre a fabricação das peças que compunham as máquinas tipográficas — e esse foi o grande diferencial da empresa. Após a saída de Paulo, coube a Jango toda a tarefa de tornearia e a Zico toda a parte administrativa e de manuseio da plaina. Refletindo sobre a demanda da oficina durante o período de direção do seu avô, Raquel conta que, na época, a empresa tinha uma atividade muito intensa. 

Peça da antiga tipografia curitibana da família Gapski (Foto: Acervo pessoal)

“Eles faziam muitos impressos para empresas. Era uma papelaria institucional, como chamamos hoje. Grandes clientes passaram por aqui, como a Berneck, uma madeireira conhecida na cidade, a Gava, a A.B. Nogueira Comércio e Industria de Madeiras, a Liquigás e a Cia Estearina Paranaense”, conta, lembrando que a antiga tipografia também prestou serviço para alguns entes federativos e postos revendedores de combustível — como Ipiranga, Shell, Texaco, BR, Atlantic e Esso.

Ainda no início, quando a oficina construía as máquinas, chegou a vender produtos para o Brasil inteiro. Fabricavam tanto as máquinas quanto as peças. Raquel afirma: “O início de tudo foi ali. Contudo, foi em 1957 que abriram a tipografia. Começaram a usar as máquinas para fazer impressos. Ou seja, expandiram o negócio.” Durante um período, os irmãos fundadores ficaram com a fábrica no fundo do terreno e a tipografia à frente. “Depois disso, a fábrica deixou de existir e minha família seguiu só com o trabalho tipográfico”, complementa.

Raquel Gapski e Linconl, seu marido, à frente da oficina (Foto: Bebel Ritzmann)

Embora Zico tenha encerrado o trabalho na década de 1980, o pai de Raquel continuou com a tipografia, seguindo a atividade da empresa durante um tempo com alguns funcionários. “Mas, em determinado momento, a tipografia em si foi deixando de ser utilizada porque foram aparecendo outros métodos de impressão, mais precisamente o offset, nos anos 1990”, elucida. 

O material tipográfico ficou completamente conservado dentro da gráfica, apesar do serviço ter caído em desuso no local, que, em um momento posterior, passou a realizar apenas acabamentos gráficos. À época, já sob a direção de João Carlos Rebello, que foi funcionário de Zico desde 1973. Com o auxílio prático do antigo impressor de Zico Gapski, Raquel reabriu a oficina, retornando a arte tipográfica à família — mas de uma nova maneira. 

A neta de Zico considera João Carlos seu mentor (Foto: Acervo pessoal)

“Isso é muito bacana, porque fico aqui na tipografia e ele aponta observações que meu avô faria. Tem essa troca quando ele traz histórias da época de funcionamento da antiga oficina”, observa a neta de Zico. João Carlos seguiu com as atividades da gráfica até os anos 2000, após atuar cerca de 20 anos na área. Raquel acrescenta: “É uma pessoa que conhece toda a minha família. Trabalhou com meu avô, considero ele um instrutor. Afinal, ele é de fato um impressor tipográfico, como se fosse um faixa-preta”, conta. 

Raquel cita que João Carlos é uma pessoa que traz conhecimento empírico, ao qual pretende unir, na nova oficina, em funcionamento desde o início do ano passado, um caráter mais acadêmico da técnica. “Estou unindo o conhecimento prático, que aprendo com ele, com estudos, como, por exemplo, o Manual do Tipógrafo, um livro da década de 1950 que era usado pelas oficinas para ensinar o ofício da tipografia. Com termos técnicos, as formas corretas de se fazer. Estou juntando esses dois mundos”, diz.

63 anos após a primeira Tipografia Gapski

Contudo, o envolvimento de Raquel de fato com a arte e o interesse de trabalhar com tipografia ocorram no início de 2020. Antes da pandemia, a empresária foi com Lincoln, seu marido, pegar alguns papéis na antiga oficina, até então fechada, e decidiu abrir uma gaveta de tipos — o que nunca havia feito antes. 

“Quando abri a gaveta e vi os tipos, foi precisamente quando minha história se transformou. Me apaixonei por aquela gaveta de tipos. Ao sair da oficina, olhei para o meu marido e contei que havia imaginado montar um negócio ali, revitalizar. Na mesma hora, ele me respondeu que havia pensado igual”, relembra Gapski, que afirma que, desde fevereiro do ano passado, só consegue pensar na retomada de uma nova Tipografia Gapski. 

Ela conta que a, partir dessa época, começaram a pesquisar as possibilidades do fazer tipográfico e começaram a entender esse mundo. “Estou aqui todos os dias a partir desse momento. Logo começamos o projeto de revitalização do imóvel. Uma pequena reforma, tentando valorizar o que a gráfica tem realmente para ser valorizado, sem descaracterizar sua essência, ao mesmo tempo, trazendo um certo conforto”, detalha. A profissional conta que, desde então, faz testes, trazendo um novo significado, ainda mais artístico, à antiga tecnologia.

*Matéria originalmente publicada na edição 250 da revista TOPVIEW. 

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