ESTILO

A redescoberta da casa

Os meses de confinamento permitiram que milhares de pessoas passassem a vivenciar suas moradias de outras formas

Ana Carina Zilles mora em um apartamento na cidade de São Paulo há um ano e meio, mas foi só nos últimos quatro meses que descobriu como o sol entra, quais móveis funcionam ou não – e até começou a usar sua sacada para outra coisa que não fosse apenas secar suas roupas. Isso porque a rotina antes do isolamento social era corrida: passava praticamente metade do mês fora. Gerente de parcerias comerciais de uma seguradora, Ana percebeu uma transformação em sua relação com a casa a partir do momento em que teve tempo para observá-la.

“Antes, era só um lugar de passagem. A quarentena me fez pensar nas coisas, perceber minhas necessidades. Hoje, meu conceito de casa está muito mais afetivo. É se apropriar do espaço em que antes eu só dormia para realmente curtir a casa”, afirma. Desde que passou a fazer trabalho remoto, Ana redescobriu sua sacada: fez uma horta de temperos no espaço e a transformou em local de contato com a natureza. “Antes, saía cedo e voltava tarde – e nunca tinha percebido esses detalhes. Agora, é onde eu sento para ver a lua, olhar a vista, tomar sol. Me coloca em contato com a natureza, o que é essencial”, descreve.

A experiência de Ana é comum a milhares de pessoas ao redor do planeta, que precisaram frear a rotina agitada – e quase sempre externa – para se isolar em casa. Para muitos, é a primeira vez em que realmente foi necessário pensar sobre as funcionalidades da moradia. “Para sobreviver na quarentena, é preciso transformar, efetivamente, a casa em um lar. A casa tinha uma função operacional: comer e dormir. A partir do momento em que preciso ficar no lugar, preciso conviver com ele. A palavra ‘lar’ vem de ‘lareira’, onde tem fogo e ao redor da qual as pessoas sentam para conversar e trocar experiências”, defende Andressa Gulin, médica e diretora de estratégia e inovação da incorporadora AG7.

Curiosa para entender como as pessoas estão vivenciando esse período ímpar, Camila da Rocha Thiesen decidiu fazer uma pesquisa. Escolheu o Instagram como ferramenta e recebe as histórias, que vêm em formato de relatos. Foi assim que nasceu o @habitaraquarentena, projeto digital que reúne as experiências de centenas de brasileiros que estão isolados em casa. “Nesse momento, está todo mundo tentando conciliar esse período tão inédito com suas ocupações. Como levar todas as atividades feitas na rua para a casa?”, questiona a arquiteta e urbanista.

A partir daí, foram dezenas de posts e insights de todas as partes do país sobre o morar. Ao analisar tudo o que recebeu, Thiesen conta que a palavra de ordem foi “ressignificar”. O autoconhecimento dita as mudanças. “As pessoas estão conhecendo mais suas rotinas e a si mesmas – e isso vai ajudar mais os arquitetos. O cliente não conseguia traduzir o que queria – eu tinha que tentar sair de perguntas óbvias para conhecer ele melhor. Acho que agora as pessoas estão mais certas do que precisam e buscam em casa”, afirma. “O projeto vai deixar de ser uma imposição do arquiteto e as pessoas vão ter mais poder de discussão, de entender o funcionamento da casa”, explica.

“Para sobreviver na quarentena, é preciso transformar, efetivamente, a casa em um lar.” – Andressa Gulin

O empreendimento AGE 360, da AG7, tem como base conceitos relacionados ao bem-estar e será um dos prédios mais altos do Brasil. (Foto: Divulgação l AG7)

“As pessoas vão perceber que uma boa arquitetura não é luxo, é uma questão de bem-estar” – Camila Thiesen

A criação do lar
Uma das definições de casa é “lar”. Mas nem sempre a habitação ocupa esse espaço emocional. Com a quarentena, isso mudou para muitas pessoas – e promete ser uma tendência que vai durar. “Já que a pessoa vai ficar mais tempo em casa, ela precisa ter o lar como seu refúgio. É o lugar em que você tem que se sentir bem”, reforça a arquiteta Alessandra Gandolfi. Contudo, Gulin frisa que a pandemia não criou nenhuma tendência, apenas as deixou mais nítidas. É o caso do bem-estar atrelado à arquitetura. “A pandemia obriga as pessoas a se adaptarem a esses movimentos, que já estavam acontecendo no mundo. Perceber que o ambiente em que você vive – quem mora junto, os lugares que frequenta – tem um impacto muito grande no seu corpo, biológico, psicológico, social e na forma como você vive. Saúde não é uma coisa individual”, justifica.

O AGE 360, um dos novos empreendimentos da AG7, foi criado com a premissa de que é necessário ter um equilíbrio diário de saúde física, mental, espiritual, educacional, ocupacional, financeira e ambiental – o que, muitas vezes, era deixado apenas para as férias. “São esses pequenos momentos de bem-estar dentro do espaço onde você mora. No mundo em que vivemos, precisamos de momentos no dia a dia para exercer nossa função como ser humano”, diz Andressa. “De repente, começo a entender que em espaços mal iluminados, que não têm conexão com a natureza, sem vista, não consigo me concentrar nem dormir, o que gera ansiedade. Preciso de lugares em que consigo organizar meu pensamento”.

O empreedimento será o primeiro wellness building do Brasil e um dos primeiros no mundo a ter a certificação Fitwel, desenvolvida por especialistas em saúde e design do governo norte-americano. Nasce alavancado por um mercado em plena ascensão: o do wellness. A indústria do bem-estar global é avaliada em mais de US$ 4 trilhões, de acordo com dados do Global Wellness Economy Monitor. Para desenhar o AGE, uma equipe multidisciplinar de consultores foi reunida para entender esses movimentos. “A questão da natureza é muito forte. Ele [o prédio] trabalha com muita iluminação natural, muitas janelas, conforto acústico e térmico, várias áreas para atividades físicas. Fizemos uma sala de meditação no vigésimo-primeiro andar – para que a pessoa olhe para o horizonte e, assim, consiga relaxar”, conta Andressa.

O “home-tudo” também chega para solucionar muitos problemas vividos na quarentena. O AGE, usando esse modelo, dispõe de um andar de conveniência, com salas para ensino domiciliar, massagens, atendimento médico, criatividade, biblioteca e um quarto de hotel. Tudo com uma entrada específica para os prestadores de serviço, sem interferir na privacidade dos moradores. “O ‘novo normal’ do morar é cuidar da casa como refúgio e, associado a isso, uma nova forma de atendimento de serviços, que é fazer cada vez mais coisas dentro de casa. A gente trouxe a facilidade do serviço em casa sem perder a privacidade do lar.”

Essas carências são sentidas nas pesquisas por imóveis. De acordo com um levantamento do Imovelweb, houve um aumento de 96% nas buscas por imóveis com quintal e de 128% por apartamentos com varanda, em comparação com o mesmo período de 2019. “Antes, tinha-se a ideia de que só uma pessoa com poder aquisitivo alto podia se importar com a casa, mas as pessoas estão se dando conta de que morar bem é uma questão de qualidade de vida. Elas vão perceber que uma boa arquitetura não é luxo e, sim, uma questão de bem-estar”, enfatiza Camila.

Os impactos no desenho da casa
Assim que passou a ficar tempo integral em casa, Ana Carine Zilles precisou realocar os móveis de acordo com as novas urgências. “Nunca tinha pensado na minha vida. Em um apartamento compacto, você abre a porta e cai direto em um cômodo. Não tem um lugar de ‘descontaminação’. Hoje, as construções não têm mais hall de entrada. Coloquei uma banqueta para sentar e tirar o sapato e um borrifador de água sanitária – tive que criar esse ambiente para separar o espaço de fora do de dentro da casa”, conta.

Essa é apenas uma das novas percepções e necessidades desse novo morar. Qualquer previsão ou expectativa a respeito das moradias nos próximos anos passa pela experiência nesses meses de confinamento. “Não sabemos quanto tempo isso vai durar ou se outras pandemias vão acontecer, se vamos viver em picos de isolamento e liberação… o que ficar de resultado disso como novo hábito vai refletir na arquitetura”, observa Camila. De imediato, Nicolau Nasser, arquiteto e diretor financeiro da Associação Brasileira de Designers de Interiores, percebe que algumas mudanças podem ser definitivas, como o home office. “É algo muito prático e acredito que a tendência vai se espalhar. Imagino que o número de funcionários [nesse regime] vai aumentar, pois facilita e faz com que eles ganhem tempo para fazer o trabalho”, opina. O hall de entrada passa a ter um papel transformador. “No Japão, eles já têm um armário para colocar os sapatos antes de entrar em casa. Você chega da rua, tira seus sapatos e parte da roupa para poder entrar”, observa.

(Foto: Unsplash)

Em um texto da revista estadunidense The New Yorker, a professora norte-americana Beatriz Colomin, da Universidade de Princeton, frisa que o medo de doenças – em especial da tuberculose – ajudou a modelar a arquitetura moderna. Para ela, muito nesse estilo arquitetônico pode ser entendido como uma tentativa de erradicar quartos escuros e cantos que poderiam acumular bactérias. Há uma possibilidade de a Covid-19 também incentivar um novo estilo de arquitetura? Para Camila, ainda é preciso esperar os próximos meses. “Tudo vai depender de quando vamos encontrar uma solução para isso [coronavírus]. Se acabar amanhã e liquidar esse assunto, acredito que não seja uma mudança radical. Mas, se formos reviver isso ou [essa pandemia] se prolongar, acho que as pessoas vão ter tempo de realmente mudar”, analisa.

Essas novas demandas podem passar por diversos ambientes da casa. “Vínhamos com uma tipologia muito recorrente na arquitetura contemporânea, em apartamentos que eram, praticamente, um estúdio. Acho que hoje
teremos que prever uma compartimentação, [colocar] um lavabo na entrada, [repensar] a estrutura da lavanderia”, observa Camila. “Assim como nós precisamos nos adaptar a esse momento, nossa casa também precisa. Essa adaptabilidade vai ser uma tendência”, finaliza.

“As pessoas estão conhecendo mais suas rotinas e a si mesmas – e isso vai ajudar mais os arquitetos.” – Camila Thiesen

*Matéria originalmente publicada na edição #238 da revista TOPVIEW.

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