A influência do Paraná nas telas
2020 foi o ano do cineasta paranaense Gil Baroni. Seu longa-metragem, a emocionante comédia dramática Alice Júnior, um pequeno filme regional gravado em Curitiba e Região Metropolitana, ganhou o mundo e inúmeros prêmios em importantes festivais nacionais e internacionais.
Em um roteiro que conversa com padrões consagrados do cinema destinado ao público teen, a protagonista, Alice (vivida pela atriz pernambucana Anne Celestino), é uma garota como muitas. Passa parte significativa de seus dias na internet e é uma influenciadora digital, mas também sofre por conta de um amor platônico e nunca deu um beijo na boca. Enfrenta questões de autoestima, de aceitação da própria imagem e sofre bullying – problemas, até certo ponto, recorrentes nessa faixa etária. A diferença está no fato de que essas dificuldades estão relacionadas à sua identidade de gênero: ela é trans.
Um dos traços que fazem de Alice Júnior, já disponível em várias plataformas digitais de streaming (entre elas, a Netflix), um filme tão especial é que o roteiro de Luiz Bertazzo e Adriel Nizer Silva e a direção de Baroni trabalham com o tema da transexualidade de uma perspectiva humanista e do lado de dentro. A opção por uma (ótima) jovem atriz trans para viver o papel-título faz toda a diferença. Em momento algum da trama, mesmo naqueles em que Alice é vítima de preconceito e violência, ela é tratada como vítima.
A protagonista transborda empoderamento, o que em outro filme poderia soar falso, ou forçado, mas não em Alice Júnior. Essas características são explicadas, em grande parte, pela relação entre a protagonista e seu pai, Jean Genet (Emmanuel Rosset). Ele não apenas a aceita como ela é – ele a enaltece, alimenta a sua autoestima. Como a mãe de Alice morreu, os dois formam um time. A vida da família vai mudar radicalmente quando Jean, bioquímico da indústria de perfumaria, decide se transferir de Recife para o sul do Brasil por um tempo, com o objetivo de desenvolver uma nova fragrância a partir de pinhas.
É crucial para a trama essa mudança de uma grande metrópole do Nordeste para uma pequena cidade fictícia, chamada Araucárias do Sul, supostamente no Paraná, que, na história, representa, simbolicamente, o que há de mais conservador, homofóbico e racista na sociedade brasileira. A transição para Alice será traumática. Ela sai de sua redoma de proteção direto para um ambiente hostil. Baroni, recorrendo a um quase clichê narrativo dos filmes hollywoodianos para adolescentes, o do peixe fora d’água, faz-nos refletir sobre como nossa sociedade pode ser retrógrada em relação a minorias, em especial aos direitos trans: na escola que passa a frequentar em Araucárias do Sul, Alice é forçada a se vestir de menino já no primeiro dia de aula e lhe é negado o direito de usar o banheiro feminino. O estranhamento com sua presença e a rejeição ao que ela representa são evidentes.
Com um roteiro bem escrito nas mãos, Baroni, natural de Guarapuava, na região central do Paraná, consegue brincar com as fórmulas narrativas da comédia adolescente, não as rejeitando. A crueldade de que Alice é vítima, por mais que seja até certo ponto previsível, choca, revolta, porque o filme consegue nos fazer empatizar com a protagonista, uma personagem tridimensional, complexa e nada passiva diante das circunstâncias. Ela sofre, porém reage.
Outro ponto positivo do filme é a recusa do maniqueísmo, bastante tentador. Araucárias do Sul, que, no início, parece ter espaço apenas para a intolerância, aos poucos, revela-se também diversa, plural. Há, na cidade, espaço para a aceitação e Alice e Jean, eventualmente, encontram afetos verdadeiros, talvez a discussão mais profunda e tocante levantada pelo longa.
*Coluna originalmente publicada na edição #244 da revista TOPVIEW.