ESTILO

A fome que nos une é a falta do sabor do abraço

Confira a carta do publisher publicada na edição 242 da revista

O medo foi o sabor mais sentido em nosso paladar, quase que servido com fel, nos acontecimentos que marcaram o ano mais intenso da nossa história. A união em torno da mesa, símbolo da congregação de fraternidade, amor e cumplicidade, foi aniquilada por um período nunca antes vivenciado por esta geração.

Março de 2020 é certamente o mês mais assombroso para cada um que lê esta página. Eu quero, por meio destas palavras, ser solidário neste tufão emblemático de acontecimentos que nos assolou. Mas agora respire e reflita: nós, apesar das milhares de perdas e dos milhões de contaminados (sim, você pode ser um dos que vivenciou isso na pele), sobrevivemos e estamos, aos trancos e barrancos, evoluindo.

Nós não sabemos onde isso acabará nem quando será o fim – ou se terá um. Mas sabemos que fomos modificados e nos modificamos para tentar viver. Sim, tentamos todos, nestes meses, viver – nós não vivemos o normal como antes.

O Chico Buarque, em Roda Viva, diz: “Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino pra lá (…)”. É assim que a gente se sentiu neste ano, o destino nos carregou para lá. Mas a gente foi contra a corrente, como o Chico disse, “até não poder resistir”. E é sobre isso que esta carta quer falar: sobre resistir, evoluir, superar.

“(…) eu quero, de alguma forma, abraçar os seus sentimentos mais profundos e dizer que estamos juntos nesta travessia, sabendo conscientemente que o mar é o mesmo, apesar das nossas embarcações serem diferentes.”

A bravura da resistência aconteceu em diversas esferas da sociedade e foi vivenciada por cada empreendedor, chef de cozinha, garçom, entregador, entre tantos outros profissionais que compõem o setor gastronômico. Para cada porta que não aguentou e se fechou definitivamente, outras resistiram fechadas, mas pulsantes em seu interior e emanando a congregação que só a comida é capaz de causar. Nas nossas artérias de asfalto, motoqueiros e ciclistas novos e experientes assumiram o risco da contaminação e lutaram pela própria sobrevivência, levando mais conforto aos nossos lares forçosamente lacrados para o exterior.

Esta carta pode parecer catastrófica, mas ela não chega a um décimo da grande tragédia humanitária, social e de saúde que vivemos nos últimos meses. E ela ainda não consegue demonstrar com grandeza suficiente o hercúleo esforço de cada um dos profissionais que se empenharam todos os dias desde o primeiro dia que a Covid-19 chegou ao Brasil. Para você que até aqui chegou, eu quero, de alguma forma, abraçar os seus sentimentos mais profundos e dizer que estamos juntos nesta travessia, sabendo conscientemente que o mar é o mesmo, apesar das nossas embarcações serem diferentes.

Alguns sentiram com mais força. Outros, nem tanto. Contudo, nem por isso o mar não foi revolto. E foi diante desse cenário, desse sentimento e desse desafio que a TOPVIEW não hesitou em colocar para rodar a quinta edição do Prêmio TOPVIEW Gastronomia, com o tema “Gastronomia da Superação”. Nosso intuito é mostrar que existem bravos resistentes que conseguiram construir o inimaginável durante essa pandemia. É uma cadeia de exímios profissionais que, mesmos abatidos (em um primeiro momento), conseguiram “botar mais água no feijão”, fizeram um bom refogado, engrossaram o caldo, aproveitaram a gordura, temperaram melhor os negócios, viveram a dureza e até penduraram as faturas, acreditando que o amanhã viria com um povo “com uma fome que nem me contem”, “com uma sede de anteontem” e para saltar “uma cerveja estupidamente gelada pr’um batalhão.”

E finalizo por aqui com o sentimento de que o amanhã está chegando, sem as certezas que antes nos garantiram no passado, mas com a consciência de que a fome que nos une é a falta do sabor do abraço. Estamos sedentos pela grandiosa congregação que é o ato de celebrar em torno de uma mesa de comida com os nossos próximos.

Aqui eu peço: erga a sua taça e brinde o sol que brilhará no nosso amanhã. Oxalá tenhamos um caminho de afeto e fartura.

*Carta do publisher originalmente publicada na edição #242 da revista TOPVIEW.

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