ESTILO

Insônia, quadros no chão e uma parede vazia chamada 2019

Insônia, quadros no chão e uma parede vazia chamada 2019: uma crônica de Julie Fank

2018. Acordo querendo ser Patti Smith, só para poder voltar na máquina do tempo e me ver, euzinha, recebendo o Nobel por Bob Dylan e me emocionando. A música, afinal, é literatura e diz tanto. Ou para ser subversiva como ela foi.

Durmo querendo sonhar com o que vem pela frente, mas previsões ferem meus princípios, então acordo sem saber o que significa um rinoceronte de pantufas, mais um sonho inofensivo e está tudo bem. Vou dormir sem ter tido tempo de viver o dia – quando não há tempo nem para a poesia barata, estamos vivendo pouco.

Música ruim educa o ouvido, poesia ruim forma caráter, vinho ruim previne a crença indiscriminada nas noites perfeitas. E a vida é simples e complicada, afinal. Ao final. Acordamos e dormimos todos os dias com planos infalíveis prestes a serem desfeitos pela chefe moral do bairro do Limoeiro. Acordo e lembro que sonhei com uma bailarina.

Pina Bausch nos diz que não lhe interessa como as pessoas se movem, mas sim o que as move. Ela, a dançarina que contava histórias enquanto dançava. E o que te move ao final? Qual é o coelhinho azul que você quer pra você? A lembrança de 1989? O cheiro das plantas regadas pela chuva de ontem porque você esqueceu? Por que você esqueceu? O que você esqueceu?

Um homem que não se esquecesse de nada não daria conta do mundo e da vida, precisaria ficar trancado num quarto escuro para não produzir mais nenhuma memória. Borges já escreveu sobre isso. Eu ainda não e isso me move.

Sobre o que você não escreveu e te incomoda? O que te incomoda a ponto de você escrever? Eu acordo todos os dias querendo escrever mais e durmo querendo ter escrito pelo menos uma página. Nunca é suficiente.

Acordo, no meio da noite, querendo ter dormido de novo para descansar direito, mas, se durmo, preferiria ter fi cado acordada e aproveitado o tempo. Tenho a sensação de estar tentando sempre atravessar uma BR. Do acostamento visualizo um posto de gasolina. Do meu lado, só mato. E os carros e os caminhões e a falta de visibilidade da estrada que não me permite tomar decisões.

É a nossa insatisfação diária mandando lembranças quando bastava andar mais um quilômetro e não precisava atravessar para o outro lado. É bem possível que eu atravessasse a rua e, chegando lá, me perguntasse o que mesmo estou fazendo aqui.

Mas por que mesmo a galinha atravessou a rua? Quem veio primeiro? O ovo ou a galinha? Pesa mesmo saber que essas perguntas existem. Tão bom não saber e continuar vivendo.

Acordo de novo. É dezembro de 2018. Atravessei um ano inteiro mesmo sem saber o que tinha do outro lado da estrada. Deixei pra trás os móveis planejados e voltei a frequentar antiquários. Nem olhei para a lista de resoluções, nem fiz uma nova. Nem desfiz as malas e já estou fazendo outras. O aeroporto já me conhece de longe.

Descobri novos oráculos, não matei saudades e refiz o caminho de casa. Minha inteligência emocional mandou cartas para mim em hieróglifos. Frequentei mais o WhatsApp que qualquer outro bar. Emagreci 10 quilos e engordei 6, sem crer que o saldo é positivo.

Conheci a Bahia, meu amor, e cortei as fitinhas do Bonfim por pura falta de paciência. A ansiedade é a melhor amiga do homem porque faz a gente descobrir oráculos.

Estou na minha casa, os oráculos já tinham me avisado. 2018 acabou e eu acabei de pintar uma parede de roxo. Os quadros acenam para mim do canto da sala perguntando quando vão ser, finalmente, pendurados. Isso parece ser suficiente. Não pretendo mais dormir, mas continuo sonhando.

*Coluna publicada originalmente na edição 219 da revista TOPVIEW.

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