A casa (utópica) da floresta
Uma das coisas materiais que Marie sonha na vida é ter uma casa no meio da floresta. “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada…” Sonhar em meio a tantas desventuras de uma vida atrapalhada, cheia de boletos, correndo atrás de coisas que ela nem sabe por que e muitos dissabores é um alento e, inclusive, muito aconselhado por tantos coachs que ela segue em busca de respostas na internet. E, mesmo que dê em nada, ela continua buscando, meio que às cegas, meio que desesperada.
A coisa só muda quando pensa em algo preciso. E isso é: ter uma casa. Seus olhos se arregalam, o peito enche de ar, como se já estivesse em meditação real lá na colina, em meio aos eucaliptos. Esqueci de pontuar: no sonho, a floresta seria deles. Aliás, diga-se bem desse sonho da quase ingênua Marie: ele é igualmente um pensamento obsessivo que ela tem acordada em grande parte dos seus dias ruins.
Quando acorda e sabe bem o perrengue a rondar seu dia longo, a gata pensa que vai abrir a janela e pronto! Lá estão elas, as árvores de eucaliptos, esguias, altas, quase tocando o céu, ora cheio de nuvens de algodão, ora com cores de cinza-chumbo, ora com água pesada e cheiro de mato, ora ensolarado, quando seu calor faz as folhas emanarem um perfume que tanto a leva à infância. E aí, tudo se alivia, soltam-se as amarras do corpo, vem a sensação da fase mais linda e vívida da vida dela.
Na infância, a família ainda estava inteira; na infância, todo sonho poderia ser realidade. Na infância, um simples pé de laranja podia ser um laranjal ou até um prédio em frente ao mar, porque sonhar quando se é criança é ter aberto o portal para o infinito. Marie suspira enquanto olha pela janela do ônibus que a leva ao trabalho, enfadonho, quase mortal aos sonhos.
Sonhar depois de uma certa vivência traumática é ter restrições de tempo, impostas pela realidade que atravessa sempre a consciência de que somos finitos, de que podemos cair mortos em um sonho eterno, mas ela fantasia mesmo assim. E se ganhar algum dia um dinheiro inesperado? Se o trabalho de professores particulares explode e ela vira uma fazedora de textos altamente reconhecida, porque, finalmente, no mundo de tantas futilidades e emojis, ensinar virou algo de grande valor? E se… e se… isso também faz parte do sonho.
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Quando pensa na casa propriamente dita, vem a imagem; no começo, não tem teto nem nada, mas, fazendo um esforço, as imagens fantasiadas chegam, como um quebra-cabeça: uma armação de madeira, é uma clássica casa de campo, com portas e janelas venezianas, com vidros limpos e largos que, novamente, ora são portas, ora são janelas mesmo, ora são claraboias. A casa tem dois andares; o de baixo é apenas uma grande sala com lareira, lavabo cheio de detalhes em ferro, decorado com flores e também uma enorme janela para os eucaliptos. Dali, vê-se os pássaros que decoram os galhos e cantarolam sinfonias finais e calmantes e, por isso, a sensação é de apaziguamento. Depois, imagina uma imensa cozinha, dessas de filme americano, também com várias janelas e uma parede cheia de panelas coloridas e utensílios domésticos à mostra. Num canto dela, em cima do balcão de madeira, uma cafeteira vermelha, um filtro de barro, uma jarra de vidro. Nada é muito palpável; a casa se move na imaginação de Marie.
Ela sai do nada e passa a algo grandioso, sem esnobismos, pois esse mais a esvazia o peito (o meu também) do que enche, e nisso há lama por debaixo dos pés, ora descalços, ora com botas para
ir até o imenso deck que dá para uma clareira linda, que não se sabe para onde vai. Marie acredita ser o fim do sonho, da imaginação e da criatividade. Quando lembra e mentaliza, sente a presença de amigos, de alguns gatos, de alguns cachorros e também de outros animais, um cervo talvez? A ele entrega o poder de, sempre que ficar triste e pretender acordar, olhar fundo nos olhos e alertar pelo instinto que o sol vem voltando lá no fim do túnel, por onde as árvores se perdem e se confundem com um imenso buraco negro. E, de repente, abro os olhos e já sei que é hora de visitar a livraria mais próxima e procurar um livro que apenas fale de amor. Ser Marie é um sonho meu e ter uma casa na floresta construída de amor e rodeada de eucaliptos é a minha utopia. E a sua? Qual é? Escreva-me: @anagarmendia.
*Matéria originalmente publicada na edição #303 da TOPVIEW.