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A era das superfakes: entenda o fenômeno e seus impactos

Em um momento em que o consumo significa pertencimento, o uso de produtos falsos passa a ser uma alternativa até por quem tem alto poder de compra

Você está no Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, o epicentro do luxo brasileiro. Ao descer em uma das garagens do estacionamento, depara-se com um Porsche 911 Carrera, edição 2025. De lá, sai uma mulher acompanhada de uma Hermès Birkin 25. Obviamente, é uma versão autêntica, certo? Talvez não.

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“O que define o que é fake ou não é o contexto”, explica a escritora, especialista em moda, luxo e negócios digitais e professora da ESPM Maya Mattiazzo. Ela criou a analogia contida no primeiro parágrafo deste texto.

A especialista afirma que a discussão sobre a falsificação na moda é amplamente discutida no setor. As falsificações são heranças do período de ascensão da burguesia, que buscava ser reconhecida pela nobreza. Essa classe, desde o seu surgimento, copia o comportamento, a forma de vestir e os interesses que antes pertenciam exclusivamente à nobreza. Maya defi ne o movimento a partir da ideia de “copiar para pertencer”.

“A gente consome para pertencer, para mostrar quem somos”, afirma. Nesse contexto, segundo ela, pouco se reflete enquanto o consumo acontece, uma vez que tudo aquilo que se diz respeito ao pertencimento ainda é intangível. Uma bolsa, um carro e até mesmo um sobrenome pode colocar uma pessoa em uma posição de prestígio perante determinado grupo de interesse.

Superfakes

O mercado chinês lidera a fabricação mundial de produtos falsificados, de acordo com o The Notorius Markets List — relatório que mapeia a facilitação da pirataria, divulgado pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR).

Há dois conceitos essenciais quando o assunto é a pirataria: a falsificação e a inspiração. O advogado especialista em Direito Digital, Propriedade Intelectual e Proteção de Dados Scott Rocco Dezorzi esclarece que há uma diferença significativa entre os termos.

“A falsificação consiste na reprodução integral ou parcial de um produto, marca ou design, com a intenção de induzir o consumidor a acreditar que está adquirindo o produto original”, explica. Essa reprodução não autorizada de um produto ou marca protegidos por direitos de propriedade intelectual é crime, passível de indenização à marca e ao consumidor e até detenção, afirma. Já a inspiração, acrescenta o advogado, refere-se ao uso de elementos estéticos que podem lembrar outro produto. Diferentemente das falsificações, as inspirações, quando respeitam os limites da concorrência leal, são autorizadas pela lei.

As inspirações, frequentemente usadas por grandes marcas do mercado brasileiro, são uma alternativa para a intenção de consumir um produto de alto valor sem o peso de ser flagrado com uma falsificação.

Em 2023, a influenciadora brasileira Flávia Pavanelli foi acusada de usar uma Hermès Birkin falsa. (Foto: reprodução | Instagram)

As falsificações, por outro lado, tornam-se cada vez mais fiéis aos produtos originais, explica Maya. Isso porque há um interesse maior em um consumo rápido, em detrimento ao consumo duradouro.

Diferentemente do que foi observado até a década de 2010, hoje, a vergonha de usar produtos falsificados é menor, diz Maya. Isso acontece por dois motivos: o já mencionado crescimento do consumo rápido, no qual os produtos são usados por períodos de tempo cada vez menores, e o avanço exponencial na qualidade das réplicas.

“A qualidade dos produtos chineses e dos vistos na região do Brás, em São Paulo, por exemplo, não é mais como na década de 1980”, afirma. Especialistas das marcas já têm dificuldades em reconhecer quando um produto é falso ou não.

Alguns fatores geram um impasse para essa certificação, explica Maya: o investimento de marcas em coleções-cápsulas, regionalizadas ou não, que dificultam a garantia de que a peça realmente pertence à marca. O aumento do consumo de produtos secondhand, que podem impactar na rastreabilidade de um produto. E, por fim, a transformação do luxo em grandes conglomerados.

“Há 10 anos, não se questionava a durabilidade de um produto de luxo”, relembra. De acordo com ela, quando se consumia luxo, investia-se também em uma cadeia de produção que, desde a extração da seda, por exemplo, respeitava critérios éticos e econômicos e que, além disso, garantia a exclusividade, a autenticidade e a durabilidade das peças.

Com a venda das marcas para conglomerados, como a LVMH, que responde por 75 marcas e divulgou um lucro líquido de € 15,2 bilhões em 2023, alguns valores podem ficar comprometidos, defende Maya. Mas vender muito é o oposto de exclusividade”, afirma a especialista. É difícil fazer com que o luxo e o lucro coexistam, explica.

Dessa forma, as maisons investem em coleções novas e edições limitadas de produtos consagrados e, assim, o consumidor deixa de acompanhar o ritmo dos lançamentos. Com o tem po, “você pode ou não estar com um produto original”, taxa a especialista. As peças precisam ser refeitas ou lançadas em uma velocidade incompatível com a atemporalidade e a durabilidade.

Com esse desequilíbrio, a autenticidade volta a ser atestada pelo contexto no qual o consumidor está. Ela descreve, por exemplo, que executivas americanas costumam ter poucas peças originais e completam o closet com superfakes — as “réplicas indetectáveis”.

Escolhas inteligentes?

Maya menciona o conceito smart choice, que sinaliza o consumo de produtos falsificados como uma possibilidade de obter a validação de quem verdadeiramente tem acesso aos bens de luxo. Ela enxerga com preocupação o movimento, que abre espaço para um mercado ainda maior de falsificações.

O objetivo do smart choice é orientar o consumidor para escolhas inteligentes de como direcionar o dinheiro. No contexto da moda, por exemplo, sugere o uso de réplicas para economizar recursos. À primeira vista, pode parecer uma forma de incentivar investimentos para a construção de patrimônio. Mas esse pensamento pode mascarar um problema maior: o aumento do consumo descartável.

Mercado de influência

Até 2027, o mercado de influência deve movimentar US$ 500 bilhões, estima um relatório do Goldman Sachs. O Brasil ocupa o segundo lugar na lista global de influenciadores. O relatório demonstra que as companhias de marketing de influência e as plataformas de streaming e de mídias sociais para vídeos curtos, como o TikTok, serão os principais impulsionadores do setor nos próximos anos.

“Todo mundo é produtor de conteúdo”, analisa Maya. Essa geração de materiais que abastece o Instagram, o TikTok, o YouTube e outras plataformas de mídia digital, não necessariamente é profissional mas mantém o princípio de não repetir.

Se, na última temporada, a bolsa de palha da Prada era o, must have, na próxima pode ser a Tote, da Loewe, exemplifica. Com a digitalização acelerada, os influenciadores aumentam a frequência de postagens e, dessa forma, o descarte de produtos que, até um instante antes da publicação ser feita, eram o maior desejo de compra.

O lançamento cada vez mais frequente de produtos contrapõe o investimento em itens de luxo. (Foto: Creative Lab)

O luxo, afirma Maya, é pautado pela qualidade e pela atemporalidade. Nesse contexto de influência, uma dúvida surge: “por que eu vou investir em um produto atemporal e duradour se ele servirá para mim apenas para o conteúdo desta estação?”

Quanto mais se publica, mais se produz. Sendo assim, faz pouco sentido o investimento em peças de luxo que, em seis meses, perderão o valor de mercado, analisa a especialista.

“Mostrar-se atentado foi preciso, mas não na velocidade que a rede social trouxe”, explica. Com esse avanço, ninguém mais precisa (nem quer) ficar 20 anos com a mesma bolsa.

Esse consumo desenfreado movimenta outros setores que não o de falsificação, como o de revenda. Maya explica que, hoje, não apenas os produtos de luxo vão para os brechós — que, antes, eram compostos de vitrines de produtos de luxo, uma vez que eram os únicos que duravam tempo o suficiente para serem repassados.

Muitos produtos, principalmente os ligados ao mercado de influência, são colocados para revenda após o uso em apenas uma sessão de fotos, para um evento ou um dia de viagem. O mercado global de vestuário usado deve atingir US$ 350 bilhões até 2028, prevê o relatório da plataforma ThredUp. Em 2023, o setor de revendas cresceram três vezes mais rápido do que o de vendas primárias e chegaram a somar US$ 197 bilhões.

The fake birkin slayer

Kourtney Kardashian, Flávia Pavanelli, Narcisa Tamborindeguy e Maya Massafera já foram listadas pela conta The Fake Birkin Slayer, no Instagram. Com mais de 340 mil seguidores, o perfil compartilha fotos de influenciadores que, supostamente, usam falsificações da desejada bolsa da Hermès. Não há comprovação de que as peças sejam falsificadas, mas o perfil se mantém em crescimento com o interesse do público pelas exposições.

Maya alerta para detalhes que podem comprometer a análise da originalidade ou não das peças por meio das mídias sociais. “Fotos com muita edição, por exemplo, podem influenciar no tamanho das bolsas”, descreve.

No Brasil, o prejuízo com produtos falsificados alcançou US$ 410 bilhões de 2023 — estima a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF). (Foto: shutterstock)

O mesmo pode acontecer com o uso e inteligência artificial, que pode simular a presença de uma celebridade em um local ela sequer esteve. O empréstimo de peças de stylist ou a compra em lojas de secondhand também podem ser justificativas para que celebridades com alto poder aquisitivo e grande influência apareçam com produtos falsos.

Outro ponto é o uso de produtos falsificados quando já se tem o original. O mercado se alimenta de réplicas, que podem ser usadas em substituição às originais em momentos em que o proprietário possa se colocar em risco. Relógios e bolsas são os principais itens desse mercado, afirma.

Para se blindar

Considerando os fatores que ampliam as chances de se deparar com produtos falsificados, a maneira mais garantida para atestar a autenticidade de um produto é comprá-lo diretamente na loja da marca, recomenda Maya.

O advogado especialista no tema acrescenta outras sugestões para que o consumidor possa se proteger das falsificações: verificar detalhes que denunciam a autenticidade (qualidade dos materiais, costurar, etiquetas e número de série, por exemplo), pesquisar a credibilidade da loja ou do vendedor, em caso de compra digital, consultar a marca para saber a disponibilidade de verificação de autenticidade e desconfiar de preços muito baixos, principalmente quando ligados ao mercado de luxo.

Se, ainda assim, o cliente for enganado, é possível, com base no Código de Defesa do Consumidor, tomar atitudes para reparar o dano, orienta o advogado. A marca poderá ser obrigada a substituir o produto por um original, devolver o valor pago e, até mesmo, indenizar o comprador por danos morais — caso o uso de um produto falsificado o coloque em uma situação constrangedora ou coloque em risco a saúde e a segurança do consumidor (no caso de cosméticos e eletrônicos, por exemplo).

5 medidas para evitar a falsificação

Scott Rocco Dezorzi orienta as marcas a:

  1. Registrar a propriedade intelectual
  2. Utilizar ferramentas de rastreamento de falsificação
  3. Ingressar com medidas judiciais após comprovação
  4. Implementar inovações tecnológicas para ampliar a segurança
  5. Investir na educação do consumidor sobre a falsificação

*Matéria originalmente publicada na edição #297 da TOPVIEW

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