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Dalton Trevisan: o eterno vampiro de Curitiba

Dalton Trevisan se despediu deste plano em dezembro de 2024, mas sua memória estará sempre viva

Dalton Trevisan, mestre da concisão e observador perspicaz da condição humana, faleceu no dia 09 de dezembro de 2024, aos 99 anos de idade, em Curitiba. A notícia, ainda que esperada, dada a idade avançada do autor, trouxe um tremendo luto para as poucas pessoas que permaneciam em contato com ele às vésperas de seu centenário.

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Trevisan, conhecido por sua reclusão e aversão à vida pública – características que lhe renderam o apelido de “O Vampiro de Curitiba” –, construiu uma obra singular. Seus contos, crônicas e novelas – muitas vezes, com personagens marginalizados e figuras solitárias, – revelam, com um estilo único, as peculiaridades da sociedade curitibana e sua complexidade.

“Dalton Trevisan era um gênio, um mestre da palavra”, afirma Aramis Chain, dono da Livraria do Chain, um dos poucos redutos que o escritor frequentava, em entrevista à TOPVIEW. “Ele vinha aqui quase todos os dias, durante pelo menos 30 anos”, relembra. “Conversávamos sobre tudo, sobre livros, a vida, Curitiba… ele tinha uma memória incrível, lembrava detalhes da cidade que ninguém mais se lembrava, da Curitiba antiga, dos costumes, das pessoas. Era um verdadeiro cronista da alma curitibana.”

Chain recorda com carinho a amizade de Trevisan com o artista plástico Poty Lazzarotto, outro frequentador assíduo da livraria. “Eles se davam muito bem”, conta. “O Poty até fez umas capas de livro para ele.” A relação do escritor com o espaço era tão profunda que ele chegou a “roubar” uma funcionária de lá, relembra Chain.

“Ele veio com toda a educação e me disse: ‘Chain, tem uma funcionária sua que me atende muito bem, muito inteligente e muito educada. Teria uma proposta para ela, se pudesse vir trabalhar comigo'”, relembra Chain. “Essa funcionária foi a Fabiana Faversani, que se tornou sua agente literária e esteve com ele até o fim.”

Em entrevista à TOPVIEW, Fabiana Faversani – que conviveu com Trevisan durante as últimas duas décadas – destaca a dualidade entre a figura pública reclusa e o homem afetuoso e generoso que conheceu. “Ele era reservado com a imprensa, sim, mas, com as pessoas da sua intimidade, era cativante: irônico, engraçado e extremamente gentil”, descreve.

Dalton faleceu aos 99 anos. (Foto: Dérson Trevisan)

“Acredito que o que mais fizemos nestes vinte anos foi conversar: sobre cinema, literatura, pequenas tragédias pessoais – com ênfase nos detalhes que escapam à maioria –, crises climáticas, política… ele tinha uma visão muito perspicaz do mundo, e nossas conversas eram sempre enriquecedoras.” Faversani, que se tornou uma das principais guardiãs do legado do escritor, ressalta a capacidade de renovação constante de Trevisan. “Nos anos 1980, ele deu um curto-circuito no conto com as miniestórias”, explica. “Depois, já com seus 90 anos, incorporou cartas, contos-
-ensaios, flertou com formas mais líricas e, nos conteúdos, reparou em tudo o que acontecia ao seu redor. Os ‘nhôs João’ e as desavenças conjugais deram espaço a personagens marginalizados, viciados em crack, delegacias, violência policial, novas formas de explorar a sexualidade… ele estava sempre atento às transformações do mundo e da sociedade.”

Para Faversani, a obra de Trevisan é um reflexo de sua constante observação do mundo, um caleidoscópio da alma humana. “Como diz nosso amigo Augusto Massi: ‘O mundo mudou. Curitiba mudou. Dalton mudou. Então, por que a crítica mecanicamente fala em repetição?”, questiona. “Dalton se reinventou a cada obra, sem perder a sua essência.”

Já para Miguel Sanches Neto, pesquisador e escritor que dedicou anos de estudo à obra de Trevisan, a importância do autor para a literatura paranaense é inquestionável. “Dalton Trevisan revolucionou a literatura paranaense”, afirma. “Ele rompeu com o provincianismo e a tradição conservadora, inserindo Curitiba no mapa da literatura brasileira de forma original e impactante.” Sanches Neto destaca a originalidade da linguagem de Trevisan, que define como “gramática do conto”. “Ele cria uma maneira diferente de fazer conto, com uma concisão e um ritmo próprios, valorizando a oralidade e os diálogos curtos e cortantes”, explica. “Quando lemos Dalton Trevisan, estamos ouvindo seus personagens falarem, com todas as suas nuances e expressões. É como se estivéssemos assistindo a uma peça de teatro, com a cidade de Curitiba como palco.”

O pesquisador, autor de ensaios sobre a obra de Trevisan e do romance Chá das Cinco com o Vampiro, inspirado na figura do contista, conheceu de perto a complexidade do mestre. “Dalton sempre teve uma relação conturbada com escritores e leitores”, revela. “Ou você o adorava e idolatrava ou se tornava um inimigo figadal. Ele era um homem de extremos, e isso se refletia em suas relações pessoais.”

Sanches Neto vivenciou essa dualidade em sua própria relação com Trevisan, passando da condição de amigo e colaborador para a de persona non grata, em determinado momento. “Só depois que houve esse conflito entre nós, é que eu escrevi Chá das Cinco com o Vampiro, confessa. Era preciso ter escrito esse romance, porque, em determinado momento, alguém tinha que dizer tudo o que pensava sobre esse escritor. Como escritor, era genial, mas, no convívio, era uma pessoa muito difícil, muito exigente. Porém, essa complexidade também fazia parte de seu gênio.”

Em uma incursão inédita ao local em que Trevisan passou a maior parte de sua vida, na Rua Ubaldino do Amaral, o jornalista Reinaldo Bessa, do Grupo Ric, teve a oportunidade de mergulhar na intimidade do escritor. A casa, que permanecia fechada desde que Trevisan se mudou, há cerca de três anos, guarda as marcas de uma vida simples e reclusa, um reflexo do próprio Dalton. “É uma casa bem velha, com móveis antigos e cortinas de plástico desbotadas”, descreve Bessa. “A sala, a cozinha, tudo com aspecto de ter parado no tempo. Caminhando pela casa, a sensação era
de estar pisando em um terreno sagrado, invadindo a privacidade de um homem que fez do anonimato seu escudo. Era como se eu estivesse entrando em um de seus contos, com aquela atmosfera densa e sombria.”

Porém, a experiência foi única, ressalta o jornalista, algo que permitiu imaginar a rotina do escritor: Dalton no quarto, na cozinha, tomando uma água e tendo uma rotina prosaica como qualquer pessoa, mas com a mente criando. “Era como se eu estivesse desvendando um pouco do mistério que envolve a figura de Dalton Trevisan”, sintetiza. Durante a visita, a equipe de Bessa encontrou, por acaso, cartas e documentos que podem lançar alguma luz sobre seus últimos anos. “Eles [equipe de cinegrafistas] olharam, mas não mexeram nas cartas”, assegura. “Deixei a recomendação para que filmassem tudo caso achassem algum documento, para preservar a memória do escritor. Acredito que esses achados podem ser importantes para pesquisadores e biógrafos que se dedicam a desvendar a vida e a obra desse grande escritor.”

 

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