Na luta, com amor: Cassia Damasceno
Fã da noite curitibana e amante das produções culturais da cidade, Cassia Damasceno, 47, sobrenome artístico, escolheu Curitiba como lar há mais de 20 anos. A londrinense desembarcou por aqui aos 22 anos para cursar artes cênicas na Unespar — Universidade Estadual do Paraná, antiga Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Arrumou suas malas, avisou os pais apenas na véspera e rumou em direção à vida dos sonhos, ainda desconhecida em sua família, que tinha forte ligação com o esporte — e nenhuma com as artes.
“Quando subi no palco, me senti em casa, vi que queria fazer isso para sempre”, relembra. Hoje, viaja apresentando a peça Preto, da premiada Companhia Brasileira de Teatro, que trata de questões raciais, desigualdades e convivência entre brancos e negros. “Preto me trouxe um lugar de fala que eu nunca tive: nunca me posicionei, nunca participei de movimento”, conta. “Tem uma caminhada terapêutica muito difícil quando você vive em uma sociedade em que não é bem-vinda.”
Foi aos poucos que descobriu a potência de sua voz. Inspirada em grandes figuras do movimento negro, como Djamila Ribeiro e Lázaro Ramos, Cassia quer construir pontes e diálogos. “Estamos nesse ponto de abrir espaço para uma discussão com generosidade. É o começo de uma conversa, precisamos construir esse caminho.”
Em sua luta, tenta “não julgar tanto as pessoas e ser paciente” para que, assim, a sociedade não se divida entre times adversários, mas em prol de uma mesma causa. “Fomos educados para depreciar uma classe. A gente não consegue fazer movimento [de repensar o preconceito] na sociedade se a gente for violento no mesmo grau”, analisa.
Um dia antes de sua entrevista para a TOPVIEW participou de uma mesa no Festival de Cinema de Gramado, em que, outra vez, apareceu o racismo como protagonista da conversa. Entre os participantes ouviu um cochicho: “agora não param de falar sobre isso”. “É um trabalho necessário [debater sobre o tema]. Todo espaço que a gente tem para falar sobre intolerância é importante”, diz.
“Fomos educados para depreciar uma classe. A gente não consegue fazer movimento [de repensar o preconceito] na sociedade se a gente for violento no mesmo grau.” — Cassia Damasceno
Com seus sobrinhos, tenta aplicar aquilo que não teve na infância. Faz questão de enviar literatura negra e fazê-los entender como funciona a questão racial no Brasil. Há pouco tempo seu sobrinho de 12 anos passou por uma situação de racismo velado: foi parado por policiais em frente à sua casa. Cássia o chamou para conversar e explicou o que aconteceu: “Eu disse que isso poderia acontecer de novo, porque a gente é preto e esse país é racista. Ele nunca tinha tido essa conversa.”
A sobrinha mais velha já está engajada em movimentos e reflexões sobre negritude. “Desde cedo, ela era a única a ter algumas opiniões, mas ela bancou isso”, conta Cassia, orgulhosa. “Tenho amigos que cresceram achando que tinham feito algo errado. Tento preparar eles emocionalmente para lidar com isso.”
No audiovisual, a atriz vê um caminho positivo sendo criado. Os projetos de que participa atualmente representam mulheres donas de suas histórias e escolhas, seguras e independentes, o que Cássia considera um grande avanço nas narrativas. Ressalta que isso é importante, também, para mostrar referências para mulheres e meninas negras. “Elas acabam não tendo desejos ousados na vida, porque desde muito jovens são definidos limites nos sonhos”, reflete. “Mostrá-las assim acaba abrindo horizontes para outras mulheres negras. Sempre falo para minhas sobrinhas que elas podem ser o que elas quiserem.”
Além de Cassia Damasceno, conheça os outros personagens da matéria de capa “O despertar do século”:
- Introdução: o despertar do século: como o racismo nasceu e se perpetuou por tantos séculos
- O império Tuttan: Luciana Tavares e Rodrigo Nick, personagens da capa
- Música, costura e negritude: Marcos Neguers
- Um salto para a transformação: Daiane dos Santos
*Matéria originalmente publicada na edição 227 da revista TOPVIEW.