O império Tuttan: Luciana Tavares e Rodrigo Nick, personagens da capa
Por trás da Tuttan Casting. Rodrigo Nick estava navegando no Orkut, anos atrás, quando se deparou com o perfil de Luciana Tavares. Foi amor à primeira vista. Apesar de namorar na época, sentiu que precisava conversar com ela. Mesmo sem confiança, arriscou chamá-la para sair. “Estava em casa quando ela me mandou mensagem. Pensei: ‘caramba, fui chamado para viver entre os deuses’”, conta Rodrigo, com nítida paixão no olhar. “Foi aí que começou o furacão”, fala Luciana, rindo.
Na época, Luciana estudava fotografia e ele tinha acabado de voltar de São Paulo, deixando para trás sua carreira no vôlei. Depois de conhecê-la, as coisas começaram a andar depressa. Até começou um curso de mecânica para agradar ao pai da amada, mas logo se envolveram no mundo da moda. Neste ano, criaram, juntos, a Tuttan Casting, a primeira agência com modelos majoritariamente negros em Curitiba.
Luciana já modelava para seus colegas da faculdade e introduziu Rodrigo na cena. Mas o primeiro contato com o trabalho foi, na verdade, anos antes, com sua irmã, quando foram vistas por um olheiro. Até então, não acreditava que aquele era um sonho possível, já que não se sentia representada pelas modelos brancas que via em propagandas, comerciais e revistas.
“Vamos ocupar os espaços que nos foram negados por muito tempo e incluir mais pessoas negras, para que elas possam ser o que quiserem ser.” — Luciana Tavares
Sua carreira oficial na moda começou em seguida, como agenciadora em uma agência, onde ficou por um ano. Foi lá que percebeu a necessidade de mudanças no processo de agenciamento de modelos — em especial os negros. “Não cuidavam, de fato, dos agenciados. Isso sempre me incomodou: lidar com os sonhos das pessoas, despertar essa vontade, mas não conseguir sustentar. Pode destruir vidas”, reflete.
Rodrigo une a carreira de modelo com a música: é rapper e está prestes a lançar um novo álbum. Com análises profundas sobre a condição de ser negro na sociedade, o casal ainda observa o papel que exerce apenas ao viver esse estilo de vida: “Vou marcar a minha família por pelo menos 200 anos só de ser isso, porque ninguém nunca conseguiu fazer nada”. Quebram a barreira do “lugar de negro” a fim de expandir os horizontes para si e para o restante da população que ainda “fica isolada nas periferias sem acessos”. São, por exemplo, os primeiros de suas famílias a alcançar o ensino superior.
O discurso da diversidade
Depois de seu primeiro book profissional, Luciana começou a participar de concursos de beleza e castings. Venceu o Miss Pinhais e estrelou diversas campanhas. Sua primeira capa de revista é esta edição da TOPVIEW. No entanto, nunca teve assistência em seu trajeto até aqui. “Nunca existiu alguém que acreditasse no meu potencial e me ajudasse. Todos me falavam que eu precisava perder quadril, por exemplo, mas ninguém me dizia como ou procurava algo para mim”, recorda.
Hoje, com tantos incentivos à diversidade, o mercado pede por inclusão, mas grande parte das agências não dispõe desses perfis entre os modelos. “É porque as pessoas não enxergam, mas a gente existe”, comenta Luciana. “Nós temos esse olhar. Sabemos quais diamantes precisamos lapidar”, ressalta Rodrigo.
Reside nesse olhar — ou melhor, na falta de olhar para os negros — que Luciana e Rodrigo viram uma chance de agir. “Às vezes, uma pessoa que ri de pessoas negras é a mesma que seleciona no casting, então, como ela vai me achar bonita?” O objetivo da Tuttan é dar oportunidade para que o discurso da diversidade seja aplicado da melhor forma: com modelos negros sendo agenciados e ajudados durante todo o processo, não chamados apenas para preencher uma cota.
A Tuttan Casting
Quando agências precisavam de modelos negros, sempre procuravam o casal, o que fez Luciana perceber que já fazia esse trabalho há anos, mas de uma forma não-remunerada. Foi mais um incentivo para começarem sua própria revolução: a Tuttan. “Pessoas brancas com uma beleza mediana conseguem muitos trabalhos como modelo, mas se você for negro, precisa ter uma beleza acima da média, excepcional, para conseguir algo”, resume Rodrigo.
Tuttan nasceu como um movimento e a agência foi a materialização do posicionamento do casal para construir um legado de amor e igualdade racial. “Queremos promover esse resgate histórico de autoestima e empoderamento”, complementa Luciana. “Vamos ocupar os espaços que nos foram negados por muito tempo e incluir mais pessoas negras, para que elas possam ser o que quiserem ser.”
“É porque as pessoas não enxergam, mas a gente existe. Nós temos esse olhar. Sabemos quais diamantes precisamos lapidar” — Luciana Tavares
O nome remonta ao Egito Antigo, mais precisamente ao faraó menino, como ficou conhecido Tutankamon, que subiu ao trono por volta de 1330 a.C., aos 9 anos. A conexão com o líder tem a ver, também, com a espiritualidade, que acreditam estar ligada a um resgate de acolhimento e paz de seus ancestrais. “Para mim, eles eram uma sociedade perfeita, as pessoas viviam em harmonia, era tudo muito evoluído — e era um povo negro”, destaca Rodrigo.
A governança de Tutankamon a partir de uma ideia de nova Era e mudança inspirou ainda mais o casal. É a mesma mentalidade da Tuttan. “Isso dói muito [estar à frente desse movimento], exige muito de nós e as pessoas às vezes não veem essa parte”, reflete Rodrigo. “Quando a gente despertar para ocupar, estamos abrindo caminhos. Somos ponta de lança.”
O casal abriu um financiamento coletivo online para arrecadar fundos para o desenvolvimento dos trabalhos da Tuttan Casting. Você pode apoiar com qualquer valor no link: bit.ly/TuttanCasting.
Além de Luciana e Rodrigo, conheça os outros personagens da matéria de capa “O Despertar do Século”:
- Introdução: o despertar do século: como o racismo nasceu e se perpetuou por tantos séculos
- Música, costura e negritude: Marcos Neguers
- Na luta, com amor: Cassia Damasceno
- Um salto para a transformação: Daiane dos Santos
*Matéria originalmente publicada na edição 227 da revista TOPVIEW.