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O Despertar do Século: como o racismo nasceu e se perpetuou por tantos séculos

O lugar de fala é dos negros, de quem vivencia essa realidade no Brasil todos os dias — mas o problema do racismo é de todos nós

Uma substância produzida pelas células colore o aspecto mais visível do fenótipo humano, a pele. A coloração, com níveis variados de melanina, do maior órgão do nosso corpo deveria ser relevante apenas para os estudos da biologia e cuidados especificamente físicos. No entanto, ela influencia, no Brasil, no grau de escolaridade, acesso aos direitos básicos, renda e até mortalidade da população. O racismo.

Por mais que o lugar de fala seja dos negros, é papel de todos — que têm privilégios no tabuleiro da raça — entender como um preconceito baseado na cor da pele foi perpetuado por tantos anos e ainda é presenciado hoje. Reside aí a importância do entendimento da branquitude, além do debate acerca da negritude. E é uma conversa em que a população brasileira — tão marcada pela escravidão de três séculos — precisa se colocar a par.

De onde vem o racismo e a desigualdade

Em maio de 1975, era publicada uma edição da revista curitibana Panorama com uma matéria intitulada “O camuflado (mas agressivo) racismo à brasileira”. A autora do estudo descrito ali concluía que oito décadas, e quatro gerações, vividas na liberdade não foram suficientes para apagar as duras marcas da escravidão.

E ainda se faz necessário colocar o tema em uma capa de revista. A escravidão é o ponto de partida para entender as distinções raciais. A população negra não veio para terras tupiniquins como imigrantes, mas à força e em condição de escravos. Os navios negreiros, com milhares de negros africanos que seriam forçados a trabalhar sem remuneração,  aportaram na costa brasileira por três séculos.

Entre os séculos 16 e 20, estima-se que foram trazidas 4,8 milhões de pessoas negras escravizadas para o Brasil. Isso coloca o país no topo do tráfico, segundo números do Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico, maior fonte sobre o assunto disponível (acesse em: bit.ly/DadosEscravidao). “A gente [população negra] não tem memória. É como se a gente acordasse no escuro: somos negros e estamos morando no Brasil, o que vamos fazer? A maioria das pessoas brancas sabe de onde vieram, nós não”, questiona Rodrigo Nick, personagem de capa desta edição.

Foi somente em 1888 que, por meio da Lei Áurea, o Brasil aboliu a escravatura — o último país independente do continente americano a fazê-lo por completo. Após a abolição, não houve um projeto efetivo de inserção dos negros na sociedade. Com isso, eles foram sistematicamente excluídos dos elementos indicadores de qualidade de vida — uma das razões de vermos índices tão discrepantes entre as raças. É como se a linha de largada para os negros estivesse vários metros atrás da dos brancos. A corrida é a própria vida e seus direitos mais básicos: educação, moradia, trabalho, segurança e respeito. “Em todo esse período, temos números significativos de movimentos e revoltas reivindicando a coisa mais básica: igualdade de oportunidade, de sermos tratados igualmente como qualquer outra pessoa do planeta”, ressalta Dora Lucia Bertulio, procuradora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e protagonista da implementação das cotas raciais e sociais na universidade.

A PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2017 mostrou, entre tantos índices, a desigualdade salarial entre raças: o rendimento de trabalhos negros era de R$ 1.531, enquanto o de brancos foi de R$ 2.757. A pesquisa do ano seguinte evidenciou o problema no desemprego: a média nacional foi de 11,9% e, entre os pretos, 14,6%.

Representações e representatividade

Em cada fase de desenvolvimento da sociedade, as reivindicações foram adaptadas, explica Dora Lucia. A população negra (pretos ou pardos) compõe 54,9% da população brasileira, segundo dados da PNAD de 2017, realizada pelo IBGE. Mas os dados de outras áreas não mostram essa maioria. A representatividade midiática é um exemplo.

Essa palavra, “representatividade”, tornou-se uma urgência em vários contextos, a partir de exigências populares. Pensar nas telenovelas, um dos produtos midiáticos mais presentes e que mais representam o país, é um bom ponto de partida para a reflexão sobre o tema — já que, como explica Douglas Kellner no livro A Cultura da Mídia, é a partir disso que construímos nossas bases de identidade, classe, raça, sexualidade, etc.

“Na época, eu não via ninguém como eu, não tinha referências, então achava que era impossível” — Luciana Tavares

No ano passado, a União de Negros pela Igualdade (Unegro Brasil) moveu uma ação contra a Rede Globo reivindicando maior representatividade dos negros na novela Segundo Sol. A trama se passava em Salvador, a capital mais negra do país, mas a maior parte do elenco era composto por pessoas brancas. “Dificilmente você verá uma família negra com empregados brancos, mas o oposto é regra”, exemplifica Marcos Neguers, cantor, alfaiate e um dos personagens perfilados nesta matéria.

A falta de identificação com aquilo que se vê na mídia foi uma questão delicada na infância de Luciana Tavares, também personagem de capa desta edição. Ao não ver modelos com traços parecidos na publicidade, achou que a profissão não era para pessoas como ela. “Na época, eu não via ninguém como eu, não tinha referências, então achava que era impossível”, conta. Relembra, ainda, da primeira vez que se viu representada: era uma modelo baiana negra em uma revista. “Ela era da minha cor, negra retinta. Lembro de ter colocado a foto dela no meu perfil do Orkut (risos).”

Foi a partir dessa percepção que ela e o companheiro, Rodrigo, criaram a Tuttan Casting, a primeira agência de modelos majoritariamente negra em Curitiba. “Nós decidimos fazer algo, pois centenas dos nossos antepassados não conseguiram. A gente veio para mudar”, destaca Rodrigo. Dora Lucia ainda explica que, por conta da falta de representação, cria-se um limite invisível daquilo que a pessoa negra pode ser: “Se não vê ninguém saindo daquele lugar, como vai imaginar que pode sair? As possibilidades de sonhar só ocorrem quando você consegue visualizar o sonho, então precisa ter essas imagens.”

O “Paraná europeu” e a exclusão sutil

A construção desse inconsciente coletivo de que a raça branca é superior à negra, em alguns casos, é sutil. Em Curitiba – e no Paraná como um todo –, por exemplo, há a invisibilização da presença e da importância da população negra na história e desenvolvimento das cidades. “Aqui, temos essa ideia de que o estado se desenvolveu porque os imigrantes europeus trouxeram o progresso, e os negros são tratados à margem disso, não somos nem reverenciados”, analisa Dora Lucia.

Temos na cidade espaços como a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, reduto fundado em 1888, pouco tempo depois da Lei áurea, com a intenção de reunir os ex-escravos e formar, assim, uma rede de apoio entre eles. (Ver o tópico “Linha Preta: os pontos da cidade ligados à cultura negra” ao final da matéria.)

“O negro que não está em posição servil ainda é visto socialmente como alguém que não está no seu devido lugar.” Marcos Neguers

Existem outros mecanismos sutis de exclusão. Marcos lembra que, na faculdade, era um dos poucos negros no cargo de chefia, que ocupava em uma empresa, e, nos voos internacionais, era comumente o único. “São as maneiras veladas, quase como um Apartheid, mas não vindo do governo, e sim da sociedade. Acontece de forma naturalizada em vários ambientes”, compara o cantor. “O negro que não está em posição servil ainda é visto socialmente como alguém que não está no seu devido lugar.”

A maneira como negros são subjugados ao acessar certos espaços acaba por afastá-los dos mesmos. Marcos lembra de uma história de quando vivia no Rio de Janeiro e notava que o sonho dos meninos que moravam na Cidade de Deus, ao lado da Barra da Tijuca, era entrar no Barra Shopping: “Eles sabiam que iam ser tão subjugados e passar por tantas questões que preferiam não ir. Isso é muito doloroso.”

Como buscar uma sociedade com menos racismo?

“Se você tem uma sociedade que restringe, coloca obstáculos, dando a impressão de que você [negro] não é capaz, tira a possibilidade do talento e a capacidade de criação dessas pessoas, como pode recuperar essa ideia [de igualdade] socialmente?”, indaga Dora Lucia.

Começa em fazer com que a população entenda que existe uma desigualdade e uma hierarquia baseada na raça — e como foi construído esse preconceito. Para a pesquisadora, é de extrema importância a denúncia de comportamentos racistas com informações precisas, além do apoio a ações afirmativas, que visam diminuir essa desigualdade, ao dar acesso à população que foi excluída por tantos anos, como as cotas raciais. “Quando as pessoas percebem a absoluta irracionalidade do racismo, conseguimos trazê-las para o nosso lado, na medida em que discutimos, refletimos e informamos.”

Empoderamento e autoestima: a beleza negra

A hegemonia dos cabelos lisos, que fazia mulheres recorrerem a procedimentos perigosos, como escovas progressivas, foi colocada em xeque. A pesquisa pelo termo “transição capilar”, processo de abandono de produtos químicos para alisamento e volta às formas naturais do cabelo — seja cacheada, crespa ou ondulada, teve forte aumento nos últimos cinco anos, mostram dados do Google Trends. A ideia tão difundida de que qualquer cabelo além do liso é “ruim” está gradativamente sendo superada. 

Para Luciana, seu cabelo afro, que é tão apreciado em sua carreira na moda, já rendeu casos de preconceito, como na vez em que atendentes de uma padaria riram e não a atenderam. “É um choque, você não sabe como reagir”, relembra. “A partir do momento que precisamos andar sempre preparados para nos defender, não temos paz, vivemos preocupados.”

Com essa aceitação dos traços da beleza negra e o entendimento dos padrões sociais excludentes, entra em cena o empoderamento. Espaços e movimentos como o Tuttan Casting colaboram com esse aumento de confiança para homens e mulheres pretos. Por empoderamento, entende-se “um conjunto de práticas que visam a emancipação sociopolítica de indivíduos inseridos em grupos expostos a opressão sistêmica, quais seja, mulheres, negritude, indígenas, LGBTs”, segundo definição da escritora feminista Joice Berth. A Tuttan tem esse objetivo: promover um resgate histórico de autoestima.

Para pensar sobre o racismo:

Livros

Mulheres, raça e classe – Angela Davis (Boitempo Editorial)

Mais importante obra da professora e filósofa estadunidense, o livro traz um panorama histórico das lutas anticapitalista, feminista, antiracista e antiescravagista, analisando como as questões se perpassam e os dilemos atuais das mulheres. A obra tornou-se um clássico ao mostrar a necessidade de uma interseccionalidade de gênero, raça e classe.

O que é lugar de fala? – Djamila Ribeiro (Letramento)

Ao questionar quem tem direito à voz numa sociedade que tem a branquitude, masculinidade e heterossexualidade como norma, Djamila trata do conceito de lugar de fala como a urgência de quebrar silêncios instituídos e ainda traz produções intelectuais de mulheres negras ao longo da história.

O caminho de casa – Yaa Gyasi (Rocco)

Em seu romance de estreia, a autora ganesa mostra como o comércio de escravos impactou, de formas diferentes, várias gerações de pessoas negras. Para isso, constrói uma linha do tempo que começa em uma tribo africana do século 18 até os Estados Unidos dos dias atuais em que acompanha a história de pessoas que foram escravizadas. A trama se inicia na trajetória de duas meias-irmãs e se desenvolve mostrando as gerações seguintes separadas pela escravidão.

Filmes

SELMA – Uma Luta pela Igualdade
Histórias Cruzadas

Séries

Cara gente branca Netflix
Ela quer tudo – Netflix

Documentários

Procure por Mim na Tempestade
A 13ª Emenda

Para seguir no Instagram

@natalyneri

Nátaly Neri é criadora do canal no Youtube Afros e Afins, que debate questões da mulher negra, perpassando consumo consciente, beleza, racismo e empoderamento feminino. Além disso, lançou no ano passado o documentário Negritudes Brasileiras.

@djamilaribeiro1

Djamila Ribeiro é filósofa, feminista e pesquisadora em Filosofia Política. A mestra ganhou visibilidade por compartilhar seu conteúdo na Internet e é um dos ícones do ativismo negro no país.

Linha Preta: os pontos da cidade ligados à cultura negra

Curitiba, como todo o país, também teve influência dos povos africanos. Para mostrar essa proximidade, pesquisadores do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) criaram um roteiro com pontos da cidade que têm relação com a cultura negra — a Linha Preta. Ao todo, são 13 pontos na rota. O objetivo dos organizadores é suscitar uma reflexão sobre como os negros são vistos e retratados na sociedade curitibana e paranaense. São construções que tiveram mão de obra de pessoas escravizadas e profissionais negros ou pontos de homenagem aos povos africanos. Confira!

Ruínas de São Francisco

A construção da obra foi iniciada pelos portugueses para ser a Igreja de São Francisco de Paula e teve participação de negros, mas nunca foi concluída. É, hoje, um dos resquícios da arquitetura colonial.

Praça João Cândido, 0 – São Francisco

Igreja do Rosário

Seu nome original é Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, pois foi projetada e construída por e para pessoas negras que, na época, estavam organizadas em irmandades. A primeira foi inaugurada em 1737 e demolida em 1931. A nova edificação, no lugar da antiga, data de 1946.

Trajano Reis, 14 – São Francisco

Memorial Africano

Localizado na Praça Zumbi dos Palmares, o memorial homenageia a população negra com 54 totens que representam os 54 países do continente. O memorial foi inaugurado em 2010, por conta dos jogos da Copa do Mundo, realizados na África. A praça, em si,  relembra o legado do líder do Quilombo dos Palmares.

Rua Lothário Boutin, 374 – Pinheirinho

Sociedade Beneficente Treze de maio

Ainda no regime escravocrata, a população negra se uniu em associações e clubes sociais em várias cidades do país. A Sociedade Beneficente Treze de maio é um dos exemplos, em Curitiba. Fundado em julho de 1888, pouco tempo depois da Lei áurea, o objetivo do espaço era agregar os ex-escravos como uma forma de ajudá-los, por meio de auxílio médico, financeiro, educativo, social e funeral.

Des. Clotário Portugal, 274 – Centro

Bebedouro do Largo

Datado de meados do século 18, o bebedouro em pedra fornecia água para os tropeiros que passavam pelo local. A presença de pessoas negras entre os tropeiros é evidenciada por algumas aquarelas de Jean-Baptiste Debret, pintor francês que integrou a Missão Artística Francesa, convidado por Dom João VI.

José Bonifácio, 33 – Centro

Conheça todos os personagens da matéria de capa “O Despertar do Século”:

*Matéria originalmente publicada na edição 227 da revista TOPVIEW.

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