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A tecnologia no meio familiar

Quando a tecnologia faz mal aos pais, aos filhos e ao convívio familiar

Em 2018, até a segunda quinzena de agosto, mais de 300 pessoas haviam se afogado na Alemanha, sendo 20 delas crianças. Segundo as entidades responsáveis pelas piscinas públicas no país, nesse último caso, a principal razão é a distração dos pais, focados na tela de seus smartphones.

O caso é extremo, mas ilustra um comportamento que não é exclusividade dos pais europeus. Sandra França é neuropsicóloga e há 15 anos faz orientação familiar com crianças de todas as idades. Desde o início do ano, tem percebido um aumento no número de queixas acerca do impacto da tecnologia, principalmente de filhos que se sentem escanteados pelos pais. “Geralmente, quando o pai reclama que o filho fica muito no computador, logo é repreendido pela criança, que diz ‘olha quem fala, você nunca larga o celular!’”, explica.

E essa não é a única reclamação dos filhos. Segundo Sandra, muitos sentem medo quando os pais estão dirigindo e olhando o celular. Ou sentem-se frustrados quando os adultos, distraídos, esquecem suas mochilas antes da aula ou não têm tempo para brincar. Outra queixa muito comum diz respeito ao famoso “aham”. “As crianças falam: ‘Minha mãe não me olha mais. Estamos conversando, mas ela só resmunga e concorda com a cabeça’”, afirma Sandra.
Ana Suy, psicanalista e professora universitária, acredita que uma das tarefas dos pais é “transmitir aos seus filhos a alegria de viver”. E a tecnologia pode contribuir para o lazer, o gosto pela cultura e a pesquisa. Pais e filhos podem se beneficiar em busca dessa alegria, seja jogando videogame ou assistindo filmes e séries. “Infelizmente, muitos vão fazer disso um exagero e abandonar a criança em frente à tela”, explica Ana. “É perigoso quando a tecnologia passa a ser usada como meio de evitar a vida.”

É importante que cada família defina qual o limite da tecnologia, principalmente quando ela faz parte da profissão dos pais. No caso de home office, Sandra sugere explicar aos filhos que, durante algumas horas do dia, a mãe ou o pai precisará ficar em frente ao notebook. Outra dica importante é não deixar a tecnologia constantemente à vista, ou seja, procurar checar mensagens e usar o notebook longe das crianças, evitando, assim, maior exposição.

Em excesso, a tecnologia pode afetar a saúde de pais e filhos. Ambos podem desenvolver transtornos do sono e ansiedade. No caso dos pais, a exaustão e o mau humor matinal, por sua vez, podem torná-los mais agressivos. Além disso, pais distraídos e esquecidos costumam dar menos afeto às crianças. É importante ressaltar que, embora a tecnologia seja naturalizada pela geração Alpha (crianças nascidas após 2010), seu uso excessivo também pode trazer consequências nocivas, como dificuldades para dormir, socializar e demonstrar empatia. “Para mim, o afeto é uma das línguas do amor. Infelizmente, quando o filho não recebe a atenção dos pais, geralmente vai procurar em outro lugar. Às vezes, com os amigos, ou até mesmo copiando os pais e se isolando na tecnologia”, esclarece Sandra.

Crianças e limites

Segundo uma pesquisa da TIC Kids Online Brasil, o percentual de jovens entre 9 e 17 anos que acessa a rede somente pelo telefone móvel chegou a 44% em 2017. No levantamento anterior, com dados de 2016, o índice era de 37%. Impor limites às crianças, em meio às redes sociais e ao celular da moda, é outro desafio.

Segundo Lia Ebines, assessora pedagógica na escola Bom Jesus, os pais precisam explicar às crianças desde cedo o que é pressão social, de modo a evitar que o argumento “mas todo mundo tem” seja usado para desconstruir sua fala. O mesmo pode ser dito sobre o desejo de ter uma rede social: “Se, como pais, não deixamos os filhos saírem sozinhos e fazerem amizades com desconhecidos, porque deixaríamos no mundo virtual?”, indaga ela.

Assim como Lia, Maísa Pannuti, doutora em educação e professora da Universidade Positivo, reforça a necessidade de monitorar o que as crianças assistem, postam e compartilham nas redes sociais. Para ela, a escola e a família precisam formar uma parceria, de modo que a criança tenha a melhor orientação possível. “Enquanto a escola ensina como pesquisar e usar a tecnologia, os pais cuidam da segurança, vigiando esse uso.” Por isso, é importante que haja debates sobre tecnologia, de modo que os pais aprendam como fazer esse monitoramento sem invadir a privacidade dos filhos.

Maísa acredita que a melhor forma de lidar com a tecnologia é pensar no modo como ela será usada: é importante que ela não substitua outras atividades, como correr, brincar e fazer amigos. “As crianças precisam ter a possibilidade de se expressar com o corpo. Precisamos de menos atividades estruturadas [como aulas de música, natação e xadrez] e mais tempo e espaço físico para elas brincarem e serem crianças”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição 216 da revista TOPVIEW. 

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