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Como Julianna Podolan Martins criou, com recursos próprios, um dos museus mais importantes de Curitiba

Ainda pouco conhecido, seu Museu de Arte Indígena possui um acervo único, fruto de 20 anos de pesquisas sobre a cultura indígena brasileira

Um delicioso aroma de canela, cravo e outras especiarias, que não consigo identificar, é sentido ao adentrar o número 1413 da Avenida Água Verde, onde está instalado o Museu de Arte Indígena (MAI). “Nós mesmos criamos as essências”, conta Samantha Donner, coordenadora do MAI. “Cada ambiente tem um cheiro.”

Enquanto aguardo a idealizadora e diretora do MAI, Julianna Podolan Martins, contemplo os objetos de palha extremamente sofisticados pendurados nas paredes, a colorida vitrine com trabalhos indígenas expostos e à venda e as fotografias emolduradas que conduzem o visitante ao primeiro piso do museu. Quando Samantha pede que eu a siga até a sala de Julianna, é por esse caminho, acompanhada das expressivas figuras, que sigo.

Sinto o ar mudar, ganhar aromas amadeirados, e o som, de aves cantando, dar lugar a um farfalhar de folhas na mata. Não é um museu comum. Como Julianna gosta de destacar, é um lugar experiencial, um “museu contemporâneo”. O que se vê é uma diversidade imensa de plumas, penas, adornos, utilitários domésticos, de ritualismos, bancos e outras peças artísticas que fazem parte do dia a dia dos índios. “As pessoas chegam no museu, principalmente as crianças, falando sempre no passado – ‘eles eram’, ‘eles usavam’ –, como se não existissem”, ressalta a diretora do MAI.

“Como brasileira, fiquei muito envergonhada de não conhecer o que existe de mais original no nosso país, que é a cultura indígena.”

“Não é o conhecimento de quem sabe muito que vai fazer a diferença. É o conhecimento daquele indígena que não sabe escrever, mas tem lições de vida incríveis a ensinar.”

O acervo acumula mais de 1.500 peças – todas adquiridas pela própria Julianna em viagens imersivas a aldeias brasileiras. Administradora de empresas, ela conta com o apoio do marido, o engenheiro agrônomo Manoel Martins Neto, para tocar o MAI.

Prestes a completar 10 anos de existência, fundado em Clevelândia (PR) e há três anos em Curitiba, o Museu de Arte Indígena recebeu em 2018 cerca de 3.800 visitantes (em 2017, foram 3.500), uma média de mil visitantes/mês – e foi o museu paranaense que mais se destacou no prêmio Modernização de Museus, criado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura. Em uma lista com 137 nomes, o MAI ocupa a 17ª colocação – à frente de instituições como MON, MIS-BH e MASP.

A seguir, você confere o resultado do bate-papo com Julianna, no qual a paranaense, natural de Guarapuava, fala da sua relação com os índios, levanta a bandeira da museologia social e explica como mantém, sozinha, o espaço.

TOPVIEW: Foi em 1997 que você despertou o olhar para os índios, certo? Em qual contexto?
Julianna Podolan Martins: Eu sempre tive contato com arte… Pedi a uma amiga, do Mato Grosso do Sul, que me mostrasse algo bem de raiz deles e ela me convidou a ir até uma aldeia. Eu disse: “Ainda existe índio?”. E ela ficou chocada. “Em que mundo você vive?”, me perguntou. Como brasileira, fiquei muito envergonhada de não conhecer o que existe de mais original no nosso país, que é a cultura indígena. Quando entrei na aldeia, fiquei ainda mais impactada. Aí começou todo esse despertar em querer saber quais são esses povos, onde eles estão, como vivem…

“Eles têm uma maneira de viver tão elevada, um respeito tão grande entre eles, uma paciência e serenidade que é o que mais me choca.”

Quais expectativas, exatamente, você tinha? De que forma conhecê-los te surpreendeu?
Aí que está, eu não tinha expectativas. O que sempre me impacta é a forma como eles vivem. Depois que passei a conviver com eles, eu nunca mais consegui pronunciar o termo “nós, civilizados”. Eles têm uma maneira de viver tão elevada, um respeito tão grande entre eles, uma paciência e serenidade que é o que mais me choca. E é muito bom, porque vão te desacelerando, te tirando dessa vida maluca que a gente vive. E mesmo os que têm contato com essa “influência” das cidades ainda mantêm uma forma muito original de ser, não se contaminam. Celular? Eles adoram. O grande desejo deles é cada um ter o seu. Tem seu lado ruim, mas gosto de ver pelo aspecto bom. Faz com que eles mostrem sua arte, consigam comercializá-la.

Os bancos indígenas são protagonistas na mais recente coleção lançada pelo museu, em parceria com Marisa Moreira Salles e Tomas Alvim, da BEĨ Editora, de São Paulo. “Eles são sócios de uma das maiores coleções de bancos indígenas do Brasil”, conta Julianna.

Em algum momento a coleção ficou grande demais para a sua casa, certo?
Sim. Eu morava em Clevelândia (PR), cidade da família do meu marido [na qual o museu surgiu], e começou a me incomodar muito ter uma coleção em casa, só para mim. A gente já vive em um país onde a preocupação cultural e educacional é tão limitada… Se eu tive esse privilégio, por que não proporcionar a outras pessoas? Aí começou todo o processo, uma burocracia absurda… O maior limitador da gente é o financeiro.

O acervo é seu. O prédio onde está instalado o MAI, também. Você mantém sozinha o projeto?
Sim, com recursos próprios. Estamos no processo de Lei Rouanet. Por enquanto, sai tudo do meu bolso. A Samantha e o Arthur [funcionários do MAI], a equipe técnica com museóloga, curador, segurança, limpeza… A minha parte enquanto cidadã brasileira eu estou fazendo, agora, precisamos de apoiadores, patrocinadores… O meu sonho é ter parceiros paranaenses que olhem para isso aqui e possam se apropriar desse projeto. A gente trabalha muito em um sistema de colaboração participativa e criativa. Como nunca tivemos apoio do poder público, é um museu privado, ainda assim, não fazemos nada sozinhos. Temos muitos parceiros voluntários, como o Marcos Soares [que assinou o evento de inauguração do museu em Curitiba], a Moema [Zuccherelli, diretora da LIDE Multimídia], o Junior Gabardo [captador de projetos], o Eleutherio Netto [artista que, ao lado de Angelo Volpi Neto, a acompanhou em viagem recente ao Xingu]… A gente foi criando esse envolvimento com pessoas amigas, enxergando todas as possibilidades de aplicação em diversos setores. Isso é extremamente importante, porque você sai de um formato de museu extremamente acadêmico, detentor só de memória, para o que o mundo vem desconstruindo. Temos uma estatística alarmante de que 92% da população brasileira nunca entrou num museu. Há um engraxate que trabalha em frente a um museu, no Pará, há 60 anos e nunca entrou lá. Ao ser questionado, ele disse que não se sentia digno de entrar no museu. Isso é muito grave! A pessoa acha que, por ter uma condição simples, não pertence ao lugar. A museologia social vem rompendo a fronteira física. Esse é um dos objetivos do MAI e trazer o museu para um prédio comercial também tem isso: começa a desmistificar um pouco essa ideia de museu como algo suntuoso.

“Celular? Eles adoram. O grande desejo deles é cada um ter o seu.”

Qual o objetivo do museu?
A nossa ideia principal é falar de arte. A gente não entende como uma arte extremamente sofisticada é tratada como artesanato. Isso a diminui, e não é menor. Esse é o nosso propósito principal, instigar as pessoas a despertarem curiosidade e sensibilidade para a arte indígena. A história foi sempre contada pela versão do vencedor. No caso da dominação indígena, pelos brancos. E foi essa versão que aprendemos na escola. Aqui, a gente tenta, aos poucos, mostrar o outro lado. Quando você começa a ter mais contato com esses povos, que têm uma relação diferente com o tempo, com a vida, você também começa a ficar chocada. “Como eu nunca percebi isso?” Desconstruir a imagem do índio genérico e a ideia da cultura congelada são outros pilares do nosso trabalho. “Eu e você podemos ter um celular, mas ele, não, ele nem precisa estar vestido”… A gente está sempre os excluindo de alguma forma.

Tem algum episódio para compartilhar com a gente?
Ano passado viriam oito indígenas para o aniversário do MAI [celebrado em novembro]. Foi quase um ano de conversa para que eles entendessem a dinâmica. Tínhamos uma programação, escola, jornalistas, entrevistas… Como eles vivem sobre o tempo, e não sob, eles mandam no tempo. No dia de estarem aqui, para fazermos tudo com calma, eu não conseguia contato com mais ninguém. Quando consegui falar, descobri que estavam saindo da aldeia – de ônibus, levariam quase uma semana até Curitiba. Eu estava desesperada! “Julianna, fique calma, a gente vai chegar”, me disseram. Perguntei o que houve. A mãe de um deles tinha sido acometida por uma “doença que branco não entende” – feitiçaria, mitologia deles. Foi um sufoco. Chegaram no dia do evento. No início foi muito difícil [adaptar-se ao estilo de vida indígena], mas hoje já consigo, tanto que não me preocupo. Se eles chegarem, ok, caso não, ok também… Se ele não tiver vontade, não vai fazer. Para agradar alguém? Jamais!

O MAI é super contemporâneo. Promove experiências sensoriais… E para 2019, quais as novidades?
Somos o segundo museu do Paraná a ter um aplicativo conectado via bluetooth que, ao ser acionado, te dá acesso a todos os conteúdos das falas que eu faço durante as mediações. Como 2019 será o Ano Internacional das Línguas Indígenas [a proposta é da UNESCO, agência da ONU], na exposição dos bancos a gente tem textos no aplicativo na língua aruak. Isso é inovador! Talvez, até, inédito. Além disso, temos mediações para visitantes de todas as idades, com necessidades especiais, cesta de experimentos para deficientes visuais… Ano que vem, vamos ampliar a experiência de estar no museu. Fizemos uma parceria com o restaurante Urucum, do chef Galeno de Castro, um espaço de culinária indígena que abriu recentemente, super inovador. Quem visitar o museu, ganha desconto para degustar a comida por lá, e quem vai lá pela primeira vez, ganha um voucher para visitar o museu.

Qual o sentimento que fica?
Ao ter a oportunidade de conviver com esses povos, melhorei como pessoa, então, a minha gratidão é constante.

E qual a lição pessoal que tira desse trabalho?
Que a gente não faz nada sozinho. Quando mostrei o primeiro vaso ao meu marido, ele ficou muito encantado. Se não houvesse essa cumplicidade, isso não teria acontecido. Não existe a possibilidade de andar pelos lugares que a gente já andou sendo uma mulher sozinha. Precisamos estar de mãos dadas. Não é o conhecimento de quem sabe muito que vai fazer a diferença. É o conhecimento daquele indígena que não sabe escrever, mas tem lições de vida incríveis a ensinar. Quando você entende que tem que ser grato a todas as pessoas e aceita o que ela pode oferecer, isso é o mais importante.

Serviço

Museu de Arte Indígena_(41) 3121-2395
Av. Água Verde, 1413, Água Verde.
De segunda a sexta-feira, das 10h às 17h30. 
 Ingressos: R$ 24 (inteira) e R$ 12 (meia-entrada). Agendamento necessário para grupos.

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