SELF COMPORTAMENTO

O cronista reflexivo

por Luís Henrique Pellanda    fotos Daniel Katz

Contrariando uma velha ideia que os curitibanos cultivam acerca de seus hábitos de hospitalidade, Cristovão Tezza sabe receber. E é com alegria que me acolhe em seu apartamento no Alto da XV. Subo as escadas até o primeiro andar, conheço o caminho, e já encontro a porta aberta. Lá dentro, alertada pelos meus passos, uma voz me pede que entre sem cerimônias. Obedeço.

O escritor me espera na sala, de pé e bem disposto à conversa, ao lado de uma bandeja de café fresco, duas xicrinhas a postos. Testa o gosto e a temperatura da bebida e me tranquiliza: tudo bem, posso me servir sem medo. Gentil, diz achar engraçado me ver no papel de repórter, me considera um colega, e logo me convida a uma mesa pequena diante de uma grande janela. A cortina clara está fechada e, por isso, não há vista para a cidade, apenas uma lembrança dela, a luz fria e branca de uma tarde de outono em Curitiba.

Logo percebo que não será fácil forjar entre nós um diálogo objetivo. Trocamos anedotas e opiniões gerais, o tempo passa e o papo é bom, mas é preciso que se transforme em entrevista. Por isso forço a mão, busco um assunto factual: que tal o novo livro do homem, Um Operário em Férias, sua primeira coletânea de crônicas? Perfeito. É um tema que exige certa sobriedade profissional, e a coisa fica com cara de trabalho.

“A crônica é o texto mais difícil de produzir”, arrisca Tezza, que se define como um aprendiz, mesmo após quatro décadas de estrada na ficção. “Mas não, não sou um cronista literário. Sou um cronista reflexivo.” E faz questão de esclarecer que a intenção de seus romances em nada se assemelha à dos textos que publica semanalmente na Gazeta do Povo, há cinco anos ininterruptos. A crônica, para ele, é outro bicho. Uma espécie de “parasita da literatura”.

Humor secreto
Mesmo assim, a recente incursão pelo gênero de Rubem Braga lhe trouxe novas oportunidades de aperfeiçoar ou pelo menos disciplinar a própria escrita. Com as crônicas, diz que aprendeu a escrever com caracteres contados — sempre 2,8 mil, nem mais nem menos —, uma experiência de concisão compulsória que lhe faltava como ficcionista. Por outro lado, o exercício de coloquialidade que se exige de um “escritor de jornal” o ajudou a encontrar o tom certo para o seu livro anterior, O Espírito da Prosa, “autobiografia literária” lançada em 2012. “É que a crônica eliminou qualquer ranço acadêmico do meu texto”, garante o ex-professor Cristovão, aposentado, desde 2009, da Universidade Federal do Paraná, onde lecionava língua portuguesa nos cursos de Letras e Comunicação Social.

Tezza também diz que, em suas crônicas, tem aproveitado para “puxar um pouco para o humor”, característica que vem sumindo de sua literatura já faz alguns anos. Ele é um sujeito bem-humorado, chega a ser famoso pela risada franca com que entremeia suas conversas, mas isso de forma alguma se evidenciaria em seus últimos livros. “Na verdade”, pensa melhor, “em meus romances há certo humor secreto.”

Pinturas
O telefone interrompe a breve digressão de Tezza sobre o humor em sua obra. Sua esposa, Beth, que está em algum lugar da casa, não o atende, e o escritor pede licença. Caminha até seu escritório discreto, uma portinha a dois metros da mesa: “Alô.” É a GVT, querendo falar com o “sr. Cristovão Cesar, por favor.”

É ele mesmo. Mas o sr. Cristovão Cesar dá um jeito de desligar o quanto antes. Depois ri alto, divertido, e prevê que nosso encontro vá durar ainda algumas horas. Lembra que é sexta-feira e o trânsito vai mal. Calcula que não terá condições de buscar na escola o Felipe – inspiração de seu romance de maior sucesso, O Filho Eterno, sobre a relação entre um pai e seu menino portador da Síndrome de Down – e encomenda um táxi para ele. Eu protesto, digo que não se incomode comigo, e Tezza me acalma: o Felipe está acostumado, gosta do passeio.

Vou ficando. O interfone toca e Tezza obedece ao chamado do carteiro. Desce. Sozinho, examino as telas nas paredes. Muitas pintadas pelo próprio Cristovão, réplicas de Van Gogh, Matisse e Modigliani misturadas ao colorido dos quadrinhos de Felipe. Quando o dono da casa retorna, cansado da corrida até a portaria, uma caixa de biografias e livros de história nos braços, pergunto sobre suas pinturas. Que fim levou sua vocação?

“Não pinto desde 1977”, confessa. É um artista frustrado, interrompido. Começou incentivado por Wilson Rio Apa, seu antigo guru, quando viveu com ele numa comunidade hippie em Antonina, na década de 70. “Ele me dizia que todo escritor tem que entender do assunto”, lembra. “Por isso comprei vários fascículos daquela coleção da Abril, Gênios da Pintura. Cheguei a pintar réplicas de quatro trabalhos de Paul Gauguin numa porta Eucatex. Até hoje ela está na casa do Rio Apa, na Praia da Pinheira, em Santa Catarina.”

 

O professor
Tezza examina os livros que acabaram de chegar, enviados por sua editora, a Record. Detém-se sobre um título de Jacques Derrida, ansioso. Agora que “vive” de literatura – sua receita soma a renda de seus livros vendidos aos cachês pagos por diversas feiras literárias no Brasil e no exterior –, em geral passa as tardes lendo.

Seu dia segue regras simples. Tezza acorda, toma café, checa os e-mails, escreve um pouco, leva Felipe à escola, ao ateliê ou à natação. Depois volta e continua a escrever, não mais à mão como costumou fazer a vida toda. Agora só usa o computador. E trabalha lentamente. Hoje, por exemplo, conta que só escreveu quatro linhas de seu próximo romance, um progresso satisfatório. À noite, assiste a um filme, ou a uma partida de futebol.

Mas quero saber da obra em andamento. Ela se chama O Professor, e Tezza garante que nada terá de autobiográfico. De antemão, anuncia se tratar de seu projeto mais ambicioso — “embora não pretensioso”, se apressa em explicar. A trama acompanha o percurso de um professor de filologia românica, dos anos 1950 até a nossa época. É um romance que promete muito, e o autor anda empolgado como nunca. Para comprová-lo, basta ouvi-lo falar: “Acho que, depois desse livro, não terei mais nada de tão relevante a dizer.”

Pais e filhos
As pinceladas de Tezza nos levam às suas fotos. Ele é aficionado por fotografia. A paixão surgiu também na década de 70, quando estudava no Acre. Contrabandeou uma velha Olympus da Bolívia e, desde então, vem preservando o hobby e aperfeiçoando sua técnica. Sempre que viaja leva consigo a sua Sony Nex-7 — seu maior prazer é fotografar cidades desconhecidas. Mas mantém guardada uma Canon 7D, que ainda está aprendendo a dominar. Não resiste e vai buscar a câmera — “pesa uma tonelada”. E aí descubro por que estou sentado naquela mesinha diante da claridade da janela. “Já que você não se importa, vou praticar um pouco”, me avisa Tezza.

E passa a me fotografar, enquanto finjo o máximo de naturalidade. Por aquele canto de sala, já passou muita gente. Todo mundo virou retrato na galeria literária do Cristovão. Pergunto quantos escritores até agora, e ele chuta: “Uns 40”. O último, inclusive, um Nobel de Literatura, o sul-africano J. M. Coetzee, homem difícil, de poucas palavras e muita reserva. De passagem por Curitiba, em abril, ele almoçou um cuscuz marroquino na casa do colega brasileiro que conheceu, em 2010, numa feira de livros australiana.

Tezza me leva ao escritório e, no computador, exibe o seu troféu: Coetzee encarando a sua lente, um olhar gelado e intimidador. “Não ficou muito bom”, lamenta o fotógrafo, apontando um ou outro defeito imperceptível na cena. E justifica-se: “Eu estava muito nervoso.”

Naquele cômodo restrito, Tezza guarda de tudo. Recordações, principalmente. Vejo uma máquina de escrever Baby, e ele me conta que pertenceu a seu pai, carteiro e advogado, falecido ainda jovem, em Lages, cidade natal do catarinense Cristovão. João Batista Tezza morreu em 1959, aos 48 anos, ao cair de sua lambreta, a lentos 20 quilômetros por hora. O filho mal o conheceu, mas acabou de descobrir uma nova maneira de se conectar a ele. Após a morte recente da mãe, Cristovão teve acesso a vários cadernos pautados onde o pai reproduzia, numa caligrafia bem cuidada, todas as cartas que redigiu na vida. Assim, aos poucos, Tezza, hoje 12 anos mais velho que João Batista ao morrer, vai conhecendo o pai através da escrita paterna.

De repente, Felipe chega da escola. Um rapaz feito, simpático e, como Cristovão, a fim de conversa. Ele me cumprimenta com entusiasmo e avisa que quer me mostrar alguma coisa. Some por cinco minutos e volta vestindo a camisa do Operário de Ponta Grossa, um presente do escritor Miguel Sanches Neto. Felipe, feito o pai, é maluco por futebol. Ambos são “atleticanos tribais”, como Tezza gosta de dizer em suas crônicas na Gazeta. E eu? Coxa-branca em lar rubro-negro, me sinto entre amigos.

 

* Matéria originalmente publicada em 10 de junho de 2013

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