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A importância histórica do Cemitério Municipal de Curitiba

A pesquisadora Clarissa Grassi, por meio de visitas guiadas, recupera a própria história de Curitiba

Numa manhã de janeiro, enquanto o primeiro ônibus de turismo saía da Praça Tiradentes, um grupo de quarenta pessoas se preparava para um tour menos ortodoxo.

Elas carregavam as mesmas garrafinhas de água, também vestiam chapéus, óculos de sol e sapatos confortáveis. Apenas os celulares e câmeras destoavam: não é permitido fotografar ou filmar dentro do Cemitério Municipal São Francisco de Paula.

Curiosos de todas as idades e profissões se aglomeravam ao redor de Clarissa Grassi, atentos à introdução da pesquisadora: um resumo da história da morte na cultura ocidental. Essa era a primeira visita guiada que ela promovia em 2016, mas sua relação com o Cemitério São Francisco é antiga o suficiente para se sentir em casa ali – e fazer com que os outros se sintam também.

“A Clarissa é incrível, ela transforma uma coisa triste em algo interessante”, comentou Elizabeth Schuback, funcionária do local. De fato, a pesquisadora cativava o público com curiosidades, surpreendia pelo conhecimento enciclopédico e contagiava a todos com seu entusiasmo e humor. Mesmo que falar de morte seja, como ela diz, ter consciência da efemeridade da vida. “A maioria das pessoas só vinha no Dia de Finados. Agora, as visitas bombam”, comparou Elizabeth.

Clarissa começou a pesquisar o espaço há 14 anos, quando outro cemitério buscou seus serviços de Relações Públicas. Desde então, o fascínio pelo tema se converteu em dois livros – Um Olhar… A Arte no Silêncio (2006), com foco na arte tumular; e um Guia de  Visitação (2014) com abordagem multidisciplinar do Cemitério Municipal –, na presidência da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais e num mestrado que ela defende em março deste ano. “Por meio do cemitério, eu fui descobrindo a história de Curitiba”, resumiu a pesquisadora durante uma conversa em sua casa, a poucas quadras do campo-santo.

O cemitério como reflexo da cidade foi o recorte escolhido para seu mestrado em Sociologia – e a narrativa que contou ao longo das três horas de passeio. Da história de personalidades aos materiais geológicos, da arte e arquitetura aos símbolos que despontam da necrópole, há uma riqueza impressionante de informações que ela compartilha com os visitantes.

Entre eles, Juliana Robin tinha perdido a conta de quantas vezes havia participado. “Toda vez tem algo diferente”, justificou a designer sobre os detalhes apontados por Clarissa. As três horas de trajeto podem parecer longas, mas são o resumo de mais de uma década de investigação minuciosa, à la Sherlock Holmes, a partir dos poucos registros imagéticos e escritos disponíveis.

Esse é o primeiro cemitério da cidade, inaugurado em dezembro de 1854, de forma que muitas personalidades locais estão ali: o pintor Guido Viaro, o arquiteto Frederico Kirchgässner, a santa popular Maria Bueno, a poeta Helena Kolody, além de sobrenomes que ainda compõem a elite local ou designam tantas ruas curitibanas.

Sua história, no entanto, como a do Brasil, não é exatamente aprazível. Foram três décadas de idas e vindas até sua criação, e o projeto só foi considerado concluído doze anos depois – ainda que estivesse constantemente em obras nos anos seguintes. “Até 1880 fazia-se obras e mais obras porque não conseguiam fechar o muro.

O cemitério vai ter regulamento muitos anos depois de aberto”, exemplificou Clarissa. “Isso demonstra uma cidade pequena, sem recursos financeiros, sem planejamento, ajeitando a coisa para fazer acontecer.” Reflexo do discurso higienista da época, foi preciso uma lei municipal obrigando os sepultamentos, até então realizados em templos religiosos, a serem levados ao São Francisco de Paula – sob risco de multa de trinta mil réis e três dias de cadeia.

Pelo campo-santo descobre-se muito mais. Clarissa continua a fazê-lo. A intensidade de símbolos católicos ilustra momentos de maior ou menor influência religiosa, túmulos suntuosos remetem aos períodos de bonança enquanto os verticalizados acompanham o crescimento da cidade e o discurso racional em relação à morte. “Tudo isso fica impresso na forma como se constrói os túmulos”, ela observou, vestindo uma camiseta com estampa de caveira. “Eles são um resumo da nossa história, só que partindo do fim para o começo.”

Daí a importância de se patrimonializar o São Francisco de Paula, preservando exemplares de arte tumular, construções em escala monumental e em materiais que não se encontram mais. Além de estar à frente do inventário histórico e arquitetônico do espaço, via edital do município, que deverá orientar sua preservação e ditar limites para novas construções, Clarissa faz parte dos pesquisadores que vêm chamando atenção para o assunto por meio das visitas guiadas, a exemplo do que acontece nos célebres Père-Lachaise (Paris) e Cemitério da Recoleta (Buenos Aires).

“Não existe patrimônio sem pertença”, ela resumiu. “As pessoas têm que sentir que aquilo é parte da cidade, que é parte da história delas. E como vão sentir tudo isso se não conhecem?”

Ao fim do passeio, o grupo, que tinha perdido alguns membros (eles saíram do cemitério em boa saúde e por vontade própria, claro), posou para a única fotografia da visita e não poupou aplausos, promessas de retornar e agradecimentos a Clarissa. Ela agora dava as costas ao sábado ensolarado e tomava o caminho de casa para continuar sua conversa com os mortos – todas as fotos, símbolos e dados que lhe falam cada vez mais.

Quatro bairros

Clarissa Grassi divide o São Francisco de Paula em quatro “bairros”. O “urbanizado” é caracterizado pelo planejamento e padronização dos anos 1960. O “centro histórico” tem o maior número de túmulos com referências arquitetônicas do século 19, concentrando barões, comendadores e nomes do ciclo da erva-mate. O “Batel” é marcado pela presença intensa de mausoléus, túmulos em terrenos imensos (até mesmo 107 m²). Por último, a “periferia” (no sentido de afastamento do centro) é a parte mais contemporânea, predominantemente marcada por túmulos verticalizados.

Visitas guiadas

As visitas acontecem mensalmente 
e são gratuitas, mediante inscrição. 
Informações: visitaguiada@smma.curitiba.pr.gov.br

 

 

1 comentário em “A importância histórica do Cemitério Municipal de Curitiba”

  1. Parabéns pela matéria Yasmin! Vamos sim dar todo apoio a Classira , e que mais pessoas percebam a importância de se patrimonializar o São Francisco de Paula!

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