SELF COMPORTAMENTO

De Marcelo Odebrecht a anônimos: conheça Isabel Kugler Mendes, a “mãe dos presos”

Não importa o motivo do crime, o papel da advogada é garantir dignidade à população carcerária - do PCC à Lava Jato

Se a senhora entrar, não poderemos garantir sua segurança”, avisou um agente penitenciário para a advogada Isabel Kugler Mendes, na porta da ala que leva às celas de um presídio na região de Curitiba. Era Natal, o número de agentes estava reduzido. Então uma das lideranças dos presos se aproximou da grade: “Pode vir. Nós cuidamos da senhora”. Isabel foi. Passou a tarde falando sobre Jesus Cristo com homens condenados por roubo, assassinato e até membros do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Com a mesma desenvoltura com que dialoga com o PCC e até intermedeia e ajuda a acabar com rebeliões com reféns, a “doutora Maria Isabel”, como é chamada pelos presos, também interage com políticos e empresários detidos na Operação Lava Jato, que estão encarcerados no Complexo Médico Penal (CMP), em Piraquara.

Isabel é presidente do Conselho da Comunidade de Curitiba, órgão que fiscaliza as 10 penitenciárias e 13 carceragens de delegacia da região. Aos 80 anos, de estatura baixa e jeito de avó bondosa, a advogada é conhecida como “mãe dos presos” e se tornou próxima de pessoas poderosas, como o empreiteiro Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht, detido pela Lava Jato. “Ele [Marcelo Odebrecht] é uma liderança nata. Quando fizemos uma festa de Natal no CMP, levamos bolo, lanche, refrigerante. Ele pegou uma caixa e tomou a iniciativa de distribuir para os outros presos, um por um. É muito simples, nem parece uma pessoa que tem esse poder econômico”, conta. Segundo ela, depois que o empreiteiro foi transferido para a carceragem da Polícia Federal, a liderança passou a ser desempenhada pelo ex-deputado Luiz Argôlo.

O ex-ministro José Dirceu, que também ficou preso na carceragem, destacava-se no trabalho na biblioteca do presídio. “Ele catalogou tudo, deixou uma maravilha”, comenta Isabel. Ela e Dirceu conversavam sobre livros e ela chegou a indicar alguns para ele. “Nunca vi nenhum deles [os ‘lava-jatos’] reclamar sobre a condenação, criticar o juiz, nada assim. Só se for entre eles, muito escondido”, afirma.

Com os “lava-jatos”, como chama os presos da operação, Isabel aprendeu que, em uma situação extrema como é a prisão, todas as pessoas ficam muito parecidas. Ela destaca que os políticos e empresários, que recebem sacolas com chocolates e lanches caros da família, costumam dividir o conteúdo com outros detentos menos favorecidos. “É coisa comum ver outros presos usando camisa do jacarezinho [da Lacoste], que ganharam dos ‘lava-jatos’”, diz. A rotina, para eles, é igual a de todos os outros. Ficam na mesma ala que os “velhinhos”, os presos que estão há mais tempo no sistema penitenciário e já passaram dos 60, 70 anos. Durante a manhã, todos ficam juntos conversando nas galerias. Às tardes, têm banho de sol, também juntos. “Eles se misturam mesmo”, garante.

A desenvoltura de Isabel para atuar junto a detentos de perfis tão diferentes vem de uma atitude que busca ser isenta de julgamentos. “Eu nunca pergunto por que a pessoa está na prisão”, diz. Para ela, não importa se o indivíduo foi preso por portar uma quantidade pequena de droga ou desviar milhões de contratos públicos: a preocupação é com o que acontece uma vez que entrou no sistema carcerário. Seu trabalho consiste em ajudar a ressocializar os detentos, oferecendo a oportunidade de fazer cursos profissionalizantes, trabalhar, estudar. Já teve casos de sucesso, de pessoas que conseguiram se inserir na sociedade, mas também já viu outros se tornarem reincidentes. “Quando isso acontece, eles ficam até com vergonha de me ver. Eu puxo a orelha mesmo.”

 

Mulher pioneira

Nascida em Tibagi (PR), filha de pais do ramo hoteleiro, Isabel se casou pela primeira vez aos 16 anos, iniciando uma família grande: são 10 filhos, além de outros agregados que ajudou a criar ao longo da vida.

Começou a trabalhar como taquígrafa na Câmara de Curitiba. Quase aos 40 anos, depois que o último filho completou dois anos, fez a faculdade de Direito. Passou no concurso para ser advogada da Câmara – e se tornou a primeira mulher nesta função, ainda nos anos 1970. “Eles me respeitavam porque eu falava de igual para igual, mas tive que conquistar meu espaço aos poucos. Era um lugar só de homens”, afirma. Quando via irregularidades, não tinha medo de falar. Ela cita como exemplo uma vez em que os vereadores aprovaram aumentos salariais seguidos em poucos meses. Foi questionar e ouviu: “Nós é que mandamos, nós que damos a forma legal”. E rebateu: “E a moral, quem dá?”.

Isabel também foi presidente do Conselho da Mulher de Curitiba por 14 anos, fazendo mais de 70 mil atendimentos a mulheres – como auxílio em casos de violência e processos de divórcio e pensão. Foi colunista de jornal e rádio, falando sobre o combate às drogas e contando pequenas histórias motivacionais.

Depois, foi vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR), onde se engajou na questão penitenciária. Viu cenas horríveis nesse meio. A última foi em uma carceragem em que 200 homens estavam em um espaço para 40, sem roupa, sem comida, em um lugar inundado com esgoto. “Eu nem consegui dormir à noite”, relata. Com a sua ação, conseguiu a transferência de 80 detentos para outros locais. “Não é questão de passar a mão na cabeça, mas sim que as pessoas possam ter um mínimo de dignidade. Uma roupa, comida”, aponta. Ela não se importa de fazer um trabalho que é malvisto por muitos. “É uma gota no oceano, mas é com um monte de gotas que se salva uma planta”, reflete.

Leminski

Isabel foi a última sogra de Paulo Leminski, que foi casado com sua filha Berenice nos dois últimos anos de vida. Ela conta, rindo, sobre a primeira vez em que o viu: “Eu abri a porta de casa e lá estava aquele homem alto, com uma camisa havaiana estampada. Ele abriu os braços e disse: ‘mãe, que bom te conhecer!’”.

O poeta já era famoso na época e a advogada relata que se surpreendeu com a sua personalidade tranquila, caseira e carinhosa. “Uma vez perguntei se era verdade que ele falava 18 línguas. Ele disse que falar, ler e escrever, mesmo, eram só nove. Mas que as outras era só conhecer a raiz que dava para entender tudo”, conta.

Isabel diz que nunca viu o genro, que morreu vítima de uma cirrose hepática, bebendo. E que, uma vez, ele a abordou antes de uma palestra que a advogada faria contra drogas. “Ele disse: ‘Você tem que falar sobre o álcool, que é uma droga legal, que as crianças veem desde cedo e que é a porta de entrada para todo o resto’. Eu nunca esqueci e mudei de foco”, afirma.

*Matéria escrita por Amanda Audi e publicada originalmente na edição impressa número 18 do TOPVIEW Journal, novembro de 2017.

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