ESTILO

Expedição às origens

O que o ritual de despedida dos mortos feita pelos Waurá, no Parque Indígena do Xingu, revela sobre nossos costumes e a relação com a vida

Na aldeia Piyulaga da etnia Waurá, situada no chamado Alto Xingu, no Mato Grosso, pergunto ao velho cacique quem desenhou aquele lobo na porta da oca. Ao que me responde “ser um filho de sua filha”, pois em sua língua não existe a palavra “neto”. É assim que os índios Waurás se comunicam, em sua linguagem “analógica”. Digo-lhe que meu sobrenome significa “raposa/lobo” e pergunto como eles chamam esse animal. Com ar de espanto diante da questão – para ele, óbvia –, responde: “UAUUUU!” Simples assim é a língua desse povo encravado no Parque Indígena do Xingu, criado em 1961 pelos esforços dos irmãos Villas-Bôas e pelo antropólogo Darcy Ribeiro.

Mulheres e crianças da etnia Waurá ao pôr do sol.

Nossa “expedição” deu-se sob os auspícios do Museu de Arte Indígena (MAI), situado em Curitiba, no bairro Água Verde. Para se chegar de carro, são três dias de viagem, levando-se um dia inteiro para percorrer cerca de 300 km do trecho dentro do Parque Xingu. Habitado por 14 etnias, em 26 mil km2, o parque constitui-se em uma das maiores diversidades étnicas do planeta. Eu já havia tido vários contatos com indígenas em suas tribos, mas a expectativa de participar do famoso ritual do Kuarup, de despedida dos mortos, em um lugar tão remoto e ainda relativamente pouco afetado pela civilização, era grande.

Início da cerimônia do Kuarup com instrumento de sopro.

A cerimônia do Kuarup é feita em homenagem aos mortos “ilustres” do ano anterior. O ritual é centrado na sua mitologia, em que Mawutzinin foi o primeiro homem, o que, para nós, seria Adão. Troncos de madeira kuarup tornam-se a representação concreta do espírito dos mortos, em torno dos quais os familiares lamentam suas perdas.

Início da cerimônia do Kuarup com instrumento de sopro.

A festa não é triste, pois os indígenas acreditam que os espíritos não gostariam de vê-los assim. Por isso, vestem-se e pintam-se de forma colorida e com grande esmero. Danças, lutas e rituais sagrados compõem a cerimônia, que chega a durar três dias. Na última noite, os guerreiros não dormem para não ter sonhos ruins, que podem influenciar suas performances.

Entre os Waurás, as ocas, fantásticas construções artesanais que medem cerca de 25 metros de comprimento por 10 de largura, são dispostas em um grande círculo. Ao meio, fica um terreiro, chamado de “ocarip”, onde ocorre a festa e a interação social da aldeia e também onde se enterram as pessoas importantes, sem qualquer indicação do local.

Com agricultura incipiente, resumindo-se praticamente à cultura da mandioca, dormindo em redes dentro de ocas de palha em chão batido e falando uma linguagem monossilábica, quase sem vogal – é surreal imaginar que, tão perto de nós, ainda existam seres humanos vivendo assim. Peço para a índia Aiu falar em sua língua a frase “Meu nome é Aiu e eu tenho quatro filhos”. Ao que ela responde: “No ku pana Aiu nutaihão mepkão auca”.

Criança com detalhe de ornamento da cerimônia.

Refletindo sobre a incrível oportunidade de estar naquele local, pus-me a pensar o que significa viver daquela forma e me questionei há quantos anos meus ancestrais viveram assim. Consultei Julianna Podolan Martins, diretora do Museu de Arte Indígena (MAI), que estimou, respondendo-me, tratar-se de cerca de, no mínimo, 1.500 anos!

O vestuário do kuarup é marcado pelo forte uso de pinturas corporais e tecidos coloridos – no caso dos homens, ainda mais exuberante que o das mulheres. Integrantes de diversas tribos se reúnem para a celebração.

Julianna conta que, por acaso, no ano de 1977, em Aquidauana (MS), sem algum motivo especial, ela foi tocada por um objeto indígena de extrema beleza e, a partir daí, deu início ao hobby de adquirir tais peças. Com apoio de seu marido, Manoel Martins, também companheiro dessa nossa jornada, passou a estudar a arte indígena e a adquirir cada vez mais itens, fazendo sua própria “marcha para o Oeste”, tal qual os irmãos Villas-Bôas imortalizaram em seu livro homônimo.

Índias lavando as roupas no rio.

O MAI é o primeiro museu particular do Brasil dedicado exclusivamente à produção artística dos índios brasileiros e conta com um dos maiores acervos do mundo nessa área. São mais de mil peças de extrema beleza e raridade. Iniciou suas atividades em 2009, na cidade de Clevelândia (PR), e mudou-se para Curitiba em 2016, para uma sede própria construída especialmente para receber o belíssimo acervo.

Crianças em frente à madeira ornamentada.

Entre muitas histórias, Julianna conta que Manoel lhe presenteou, em seu aniversário, com uma valiosa pedra de diamante bruta. Ocorre que Julianna viu-se tocada por um lindo banco de madeira, mas o índio estava irredutível diante das propostas de aquisição, até que a ela lhe ocorreu oferecer a pedra em troca – não sem antes consultar Manoel, que consentiu. Assim foi feito e, hoje, o banco faz parte do acervo do MAI. O museu surpreende e toca profundamente seus visitantes, lembrados de que nossos índios produziram objetos de tamanha beleza e qualidade.

*Matéria publicada originalmente por Angelo Volpi Neto, com fotos de Eleutherio Netto, na edição 217 da revista TOPVIEW.

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